21.03.18
Depois do encontro inesperado, da surpresa deste encontro em nada desejado por ambos, ficou a sensação que afinal, tinha valido a pena serem tão amigos, terem tido uma infância em que, acima de tudo, estava a sua amizade, que se prolongou pela vida fora até ao momento em que esta os havia separado.
Foi um momento de excitação, de adrenalina, um dos dois podia ter morto o outro e, apesar de tudo, apesar do negrume da noite, algo lhes estava gravado na memória que impediu o inevitável de acontecer. Ambos se ouviram e aquelas vozes que durante anos se gravaram nas suas memórias foram cruciais para evitar uma desgraça de que cada um deles jamais se refaria, matar um amigo. O destino é tortuoso, escreve por linhas de difícil compreensão, mas nem sempre inevitáveis, por algumas delas se encontra uma saída, uma espécie de válvula de escape que permite o discernimento mais correcto em momentos de extrema delicadeza.
Para Branquelas, aquela voz de comando que soava aos seus ouvidos era uma dádiva do céu, era o seu amigo, não tinha dúvidas e arriscou, ao mesmo tempo que baixava a arma, atirou à silhueta que se recortava contra os escassos raios de luar, Noite escura, és tu? A reacção imediata, do outro lado, não se fez esperar, ao ouvir isto Noite Escura abrandou de imediato a pressão sobre o gatilho onde, o seu indicador direito, estava prestes a fazer o movimento final que provocaria o disparo e a morte do seu oponente, àquela distância não havia dúvidas. Baixou momentaneamente a guarda, parou no tempo, aquela voz, não podia ser, era demasiada crueldade do destino, à sua frente, já dominado pela força da sua voz, estava o seu amigo de infância, Branquelas estava diante dele.
Branquelas, és tu? Baixou a arma, suspendeu todos os seus sentidos de segurança e a adrenalina desceu abruptamente. As armas de ambos caíram ao chão misturando-se com o capim da chana, um passo em frente de cada um daqueles vultos transformou aquele minúsculo ponto no planeta num lugar de afectos à muito abandonados, estavam juntos de novo, ainda que em circunstâncias bem difíceis e quase irreais. Um abraço compulsivo, umas lágrimas nos olhos, que mesmo os mais duros também têm sentimentos e choram, se choram, choram com o encontro que nunca deveria ter acontecido ali. A única testemunha viva do momento encontrava-se a quilómetros luz de distância, mesmo assim, resolveu congratular-se com o momento inundando-os com a sua luz que, de tão envergonhada, só aparece à noite e em determinadas circunstâncias.
Para eles abriu uma excepção e inundou-os, por momentos com um radioso luar, afastando de diante de si uma nuvem ameaçadora para que os seus raios os atingissem na plenitude de um encontro de olhares esquecidos que se renovaram ao luar. Olhos nos olhos, sentiram-se, tocaram-se e arrepiaram-se após tantos anos sem se verem, sem se encontrarem, mas nunca esquecidos. Estás mais magro Branquelas, não comes? Só o que posso e nem sempre é possível. Tens de te alimentar, que dirão os teus pais quando te virem? Não sei se algum dia mais me verão, esta vida não é fácil e a minha volta, o retorno a casa, é impossível. Hão-de ver, um dia isto acaba e todos estaremos juntos de novo. Era bom que assim fosse, mas só seria possível se isto acabasse mesmo e não vejo como.
Sentados no chão, no meio daquela imensidão, Noite Escura só pensava em como ajudar o amigo, já era certo que não o levaria consigo, mas, estava tão magro, precisava de outras coisas. Deixou-lhe as rações de combate e umas barras de chocolate que trazia sempre consigo, queria que ele ali ficasse quieto e silencioso até os seus homens desaparecerem no horizonte, só depois disso estaria em segurança. Como duas crianças conversaram de mãos dadas, como se os fluidos positivos de um passassem através da pele para o outro, perderam-se no tempo do seu reencontro até que o pio do mocho se fez ouvir ao longe. Tenho de me ir embora, tenho de prosseguir a operação e tu ficas aqui até de manhã, altura em que o terreno estará livre da nossa presença e possas seguir o teu caminho em segurança. Um longo abraço selou a separação e, enquanto Noite Escura se afastava, branquelas deitou-se no capim, camuflado pela altura e quantidade da erva que o rodeava.
Branquelas acabou por adormecer por umas horas, acordou quando o sol lhe bateu em cheio na cara, já a manhã tinha despontado há tempos, lentamente soergueu-se por entre o capinzal, nada, não via nada por ali, ficou mais tranquilo ainda quando deparou com a passarada voando de cá para lá e vice-versa. Bom sinal, sinal de que não havia animais, humanos ou outros, que estivessem presentes na chana, caso contrário os pássaros tinham-se afastado e voado para bem longe. Ergueu-se com a arma na mão, limpou-a das ervas e terra que se lhe tinham pegado, verificou a culatra, o carregador, estava pronto e municiado podia começar a deslocar-se até à base que, estava certo, encontraria destruída, bem como as restantes que se encontravam na zona.
Efectivamente, o que fora um acampamento, quase uma pequena cidade no meio da mata, tinha desaparecido, as cubatas foram queimadas e todo o material existente destruído. Da escola restavam restos da ardósia onde os pequenos escreviam as lições, o posto médico estava reduzido a uma meia dúzia de medicamentos, que não tinham muito mais, espalhados pelo terreiro e espezinhados até se desfazerem. Nem uma cubata em pé, não tinha onde se abrigar senão á sombra vigorosa das enormes árvores que o rodeavam. Não via vivalma por ali, deixou os olhos vaguearem pelo amontoado de escombros para tentar distinguir alguém por perto, nada, não havia nada. Dos seus companheiros nem sequer sabia se algum tinha escapado, estava só. Sentou-se no que foi um banco para as reuniões de grupo, uma árvore velha e abatida que se estendia no terreiro, poisou a arma a seu lado e levou as mãos à cabeça como a perguntar-se o que tinha falhado.
Um pequeno e imperceptível estalido, só possível de ouvir por quem está muito habituado aos ruídos da mata, despertou-lhe a atenção e, de um pulo, estirou-se por trás do tronco de arma aperrada. Viu uma cabeça a despontar por entre o verde das árvores, depois outra e outra, e mais uma quantidade delas. Cansados e desnorteados, cerca de cinquenta homens apareceram do nada, vindos das entranhas da floresta, sentaram-se ao redor do tronco, questionou-os sobre os outros homens, que não, não sabiam de mais ninguém que se tivesse salvo, eles foram-se encontrando ao longo do trajecto, desde a fuga da vila até ali. Logo que deram por perdida a batalha do interior da vila, tinham-se deslocado uns quilómetros para norte, atravessaram o rio longe da barafunda do rescaldo das tropas e infiltraram-se pela selva até ali. Não sabiam de mais ninguém que tivesse conseguido fugir, pensavam que só eles o tinham conseguido.
Agora só restava inventariar os estragos e as perdas humanas e porem-se a andar para a base central, bem longe da fronteira. Branquelas sabia que esta derrota não ia ser bem-recebida na cúpula central, afinal, tinham apostado tudo neste ataque que esperavam ficasse na história como uma grande vitória do movimento. Assim não aconteceu, certamente ia ser o alvo preferencial, o responsável pelo desastre, era sempre assim, os que se escudavam na distância dos combates à sombra das grandes capitais da Europa eram os mais intransigentes na obtenção de resultados. Na verdade, as perdas eram enormes, tanto em homens como em material de guerra que dificilmente seria substituído, mas não havia nada a fazer a não ser tentar saber onde estava a fuga de informações que permitiu à contra-informação oficial saber o que estava em preparação, como estava, onde seria o ataque e o mais importante, quando se realizaria. Era impossível que o soubessem se não houvesse dentro das suas linhas alguém que os tivesse informado, descobri-lo seria importante, mas também sabia que era uma tarefa hercúlea e quase impossível.
Branquelas ía passar pela sua Sibéria em África, ía ser votado ao ostracismo, ía ser quase esquecido, se não fosse pior. A grande vantagem que tinha, relativamente às cúpulas do movimento era que sempre fora um operacional e um homem que foi somando vitórias ao longo dos tempos em que integrava a guerrilha. Vitórias pequenas, aqui e ali, mas vitórias que no seu conjunto mantinham a tropa em alerta e mobilizada nas zonas em que actuava, permitindo-lhe a mobilidade suficiente para rapidamente se transferir para outra área que desestabilizaria com novos ataques. Os homens que o seguiam, respeitavam-no pelo ardor e coragem que punha nos combates em que participava, na ajuda que lhes dava e na forma humana como os tratava, era mais um deles.
Agora sentia-se acuado, estacionado na base central, sem acção, sem a adrenalina a que estava habituado e isto fazia-lhe mal, alterava-lhe o humor e a sua boa disposição e fazia-o sentir inútil. No entanto aguardava que a sua vez chegasse de novo e ele sabia que chegaria, estava a assistir ao abandono senão mesmo à debandada de grande parte dos homens que combatiam ao lado do movimento, estavam cansados de guerra, cansados da luta e sobretudo, cansados de tanto esforço, tanto afastamento das suas famílias e sem verem resultados palpáveis. Por outro lado, o governo tinha aquela coisa da “psico” que procurava chamá-los para o seu meio sem os castigar e até com a vantagem de lhes proporcionar uma vida nova, material e humanamente. Estavam mal e os comandos da guerrilha, mal preparados, eram relativamente poucos e nem todos com o seu gabarito, esperava a sua vez.
Estava a assistir à dificuldade crescente de se movimentar nas matas do país, os culpados eram a excelente organização do exército, ao dominar e controlar enormes áreas, com base em aquartelamentos espalhados por todo o território e pelas prestações de uma mobilidade extraordinária das forças especiais, criadas para atacar e perseguir a guerrilha por todo o lado e nos locais menos esperados. Quase eram apanhados à mão, sem darem pela aproximação e envolvimento destas forças, ainda se debatiam com a facilidade de recrutamento, para estas forças, por homens oriundos da sua própria base de apoio. A coisa estava difícil e a piorar a olhos vistos.
O seu tempo morto, como ele considerava aquele que ali levava sem nada fazer, era destinado às suas recordações, os pais, os amigos, o bairro de que tantas saudades tinha, começava, também ele a sentir saudades desses pequenos mimos de que todo o ser humano não abre mão. Estava já há demasiado tempo ausente dos seus, fora da realidade do seu mundo, demasiado tempo no mato, estava a ficar afectado por tanta luta sem resultados palpáveis e logo agora que as ajudas internacionais começavam a rarear. Sem resultados, aqueles que os apoiavam material e monetariamente começavam a duvidar que algum dia conseguissem vencer aquela guerra e como tal os seus objectivos de abocanhar parte da riqueza do país estava a ser posta em causa. Ainda se debatiam com o aspecto da economia mundial que se estava a degradar e nos seus próprios países tinham enormes problemas por resolver o que acarretava baixar as ajudas aos movimentos como o deles. Não fazia ideia de como tudo isto iria acabar, nem quando.