Ainda a manhã não se anunciava e já Noite Escura e Branquelas estavam de pé, hábitos que dificilmente se perdem. Tomar banho, vestir-se, descer para o pequeno-almoço, já de mala na mão e desandar para o comboio que os levará ao seu destino final. Estavam com alguma excitação, iam finalmente estar com os seus amigos e familiares que há tempo não viam.
Apanharam o táxi em direcção à estação dos caminhos-de-ferro, compraram os bilhetes e esperaram a chegada da composição que romaria a sul. A sul, perto do sol onde o calor se fazia sentir mais e um bocadinho mais perto do continente de onde vinham, da sua terra. Ao fundo da linha começavam a divisar a sua silhueta, vinha aí, apitou ao entrar na estação, lentamente foi-se chegando à frente, até ao fim da plataforma, parou, dois apitos e as portas começaram a abrir-se.
A viagem, que não tardou a iniciar-se, fez-se no silêncio de que cada um deles necessitava para pôr em ordem as suas ideias, acertar a cabeça com a realidade que agora se fazia nova. De quando em vez uma palavra trocada entre ambos justificava este recolhimento, esta entrada no seu interior, no mais profundo do seu ser, onde encontravam as suas raízes, as suas ligações, os seus ideais, agora, em alguns casos, postos em causa. Não viam os embondeiros ao longo da linha-férrea, não viam um ou outro animal selvagem que se atrevesse a aparecer à passagem do comboio, isso era lá, na sua terra. Umas horas depois estavam a apear-se e a procurar transporte para o que viria a ser a sua morada de agora em diante.
Dadas as indicações necessárias lá seguiram estrada fora em direcção à montanha onde viviam os pais, à sua montanha pois ali viveriam também. Estrada sinuosa, estreita, com algum trânsito, o que a tornava ainda mais perigosa, mas a bandeirada era grande e o motorista não tinha pressa, ia devagar, em segurança, levá-los-ia ao seu destino. Estavam ansiosos para chegar, mas aguentavam a sua ansiedade como podiam, notava-se, no entanto, o seu nervosismo. Como seriam recebidos, como ia ser o encontro, perguntas a que só obteriam resposta aquando da sua chegada.
Subiram o monte, rodopiaram pelas íngremes estradas, curva aqui, contracurva logo a seguir, subindo, planando sobre uma altura considerável de onde até se via o mar lá longe. Serpentearam por entre campos de cultivo ou mais ou menos cultivados, alguns em perfeito estado de abandono, começaram a divisar ao longe um conjunto de três casinhas, cuidadas, separadas por uma ampla área de terreno tratado. Foram-se aproximando, cada vez mais perto, chegaram ao que se poderia designar por um portão, nem fechado nem aberto. Dois pilares laterais e duas grades que se abriam ao menor contacto logo que retirada a lingueta que as segurava uma à outra.
Das três casas, fechadas que o frio assim o exigia, saía uma luz quase irreal, as janelas iluminadas num ambiente tão frio, cheirava mesmo a natal, parecia um daqueles postais em que até a neve ajudar a perceber a época em que se está. Das chaminés, saía fumo, esbranquiçado, enrolado e dirigindo-se para o alto, um ligeiro vento, frio, espalhava-o depois bem por cima das casas e o cheiro a lareira era intenso, sobrepunha-se ao cheiro do campo e, àquela hora, este era bem forte.
Apearam-se do táxi, pagaram a corrida, retiraram as malas e atravessaram o portão. Lentamente, como quem queria guardar na memória o que viam, encaminharam-se para uma das casas, a que se encontrava a meio das outras duas. Em frente à porta, pousaram as malas no chão, encheram o peito, olharam um para o outro e, com os nós dos dedos, bateram à porta. Por uns segundos ficaram em suspenso, quem viria abri-la? Quem é, suou uma voz de dentro. Visitas, responderam juntos. Quase automaticamente ouviram um grito vindo do interior, mesmo por trás da porta, ao mesmo tempo a porta abre-se com uma rapidez incrível.
Não acredito que sejam vocês, não acredito que estejam aqui, belisquem-me para eu ter a certeza, logo os dois juntos, que felicidade, entrem que está frio. Entraram e mal a porta se fechou os abraços foram mais que muitos, beijos, comoções e lágrimas. Mal ouvi as vozes reconheci-as logo e nem queria acreditar, os vossos pais vão ficar radiantes. Vai ser uma verdadeira consoada, todos juntos de novo, o Josué também cá está com a mulher e os filhos, vou chamá-lo. O Meia de Leite está cá? Então estamos todos, todos e mais alguns que ele já se adiantou com a descendência.
Meia de Leite aparece na sala e não se fazem rogados em distribuir abraços e lágrimas entre eles, os três mafarricos de novo juntos e há quanto tempo não viam Meia de Leite, que prazer, que satisfação. E Jeanne, como está? A tratar do mais pequeno, mas não demora nada. Vieram mesmo na altura certa, vamos cear todos juntos, agora são mais dois pratos, mas são dois pratos que vão encher a casa. Onde vai ser a ceia? Pelo que estamos a ver vai ser mesmo aqui, não nos enganámos na casa. Vai ser aqui, daqui a nada os vossos pais estão a chegar, vai ser uma surpresa e tanto. Agora não vão ter com eles, esperem aqui que eles cheguem que eu também quero ver a cara deles quando vos virem cá.
E chegaram, os pais de Noite Escura e de Branquelas aproximaram-se da casa e empurraram a porta, o velho hábito da porta sempre aberta a quem quisesse entrar estava neles enraizado, já vinha dos tempos do seu velho bairro, da Vila Alice, não se perdiam com facilidade. Nas mãos vinham os sacos com lembranças para todos, quase todos, que não contavam que os filhos lhes aparecessem assim de repente, estavam mesmo muito longe de imaginar que isso aconteceria, mais a parte que lhes cabia do repasto, da ceia da consoada, sempre fora assim, cada um levava o que podia e tudo junto era um excelente momento de convívio e um lauto jantar.
Atrevemo-nos mesmo a pensar que ao cruzar o umbral daquela porta iam a pensar nos filhos, que bom seria que ali estivessem, era o segundo Natal nesta terra e seria muito melhor, muito mais aconchegante e com muito mais calor e amor se os filhos ali estivessem, se se juntassem todos como sempre aconteceu. Nesse preciso momento, uma pontinha de inveja lhes ruía o coração, sem nenhuma maldade, só a saudade dos seus, Francisca e José, pais de Meia de Leite, eram os únicos que tinham o filho junto a si, era só isso que invejavam e mesmo assim agradecendo a Deus por eles o terem ao pé, por sentirem o carinho do seu rebento e dos rebentos que produziu junto a eles. Um dia, quem sabe? Poderiam ter os seus ali também.
Assim que a luz interior se esvaiu para a rua pela porta aberta, criando uma sombra que se prolongou ao exterior pousando delicadamente a seus pés, ficaram petrificados, incapazes de articular um som. Por momentos, quase se poderiam contar séculos naquele momentâneo silêncio, os olhos fixaram-se no interior da casa, iluminada e aquecida para a noite invernosa que se vivia. Incrédulos, olharam-se ainda uns aos outros até que uma explosão de alegria assomou àqueles rostos, tisnados pelas gerações de vivência debaixo do sol implacável de África e agora remetidos ao sol deste sul ensolarado, mas frio, que de alguma forma lhes lembrava o que deixaram lá longe. Meus filhos, suou.
Inacreditável, estavam ali mesmo à frente deles, ao alcance de uma mão, os filhos que há tanto não viam, que tantas preocupações lhes davam pela ausência do calor familiar, sempre tão longe e tão sujeitos às vicissitudes da guerra em que estavam envolvidos. As mães, sempre as mães, foram as primeiras a avançar na sua direcção e, na confusão de beijos e abraços, de lágrimas e choros, ninguém sabia muito bem quem era filho de quem e se o abraço que dava era mesmo ao seu filho se ao filho do seu amigo, não interessava nada, o importante é que os filhos estavam ali, inteiros, intactos e vivos, os seus filhos. Os pais não tinham lugar nestes abraços, estavam demasiado apertados para nele se introduzirem, mas as lágrimas também corriam pelos rostos cobertos de sulcos que a vida se encarregou de ir abrindo, criando rios por onde agora corria a seiva dos seus olhos marejados de felicidade, abraçaram-se também e nesse abraço couberam todos, mães filhos e amigos.
De mãos dadas e abraçados, foram entrando, a porta fechou-se atrás deles e durante alguns minutos mais se prolongaram os beijos e abraços até ao momento em que alguém propôs que se brindasse ao momento de suprema felicidade que todos viviam. Flutes cheias, copos ao alto, à família, à amizade, ao futuro, feito o brinde os copos depositados na mesa e as mãos ainda entrelaçadas de ternura, buscando o que há muito não tinham por perto, os filhos, os filhos dos amigos, os amigos. Não fosse o frio tão intenso e dir-se-ia que ainda estavam num quintal quente de África, debaixo da sua mangueira onde tantas consoadas foram feitas, ali mesmo na Vila Alice, onde depois da janta a miudagem se reunia para uma última brincadeira na rua com a vizinhança.
Era talvez o único dia do ano em que havia pressa em ir para a cama mais cedo, não por cansaço, mas porque havia que acordar bem de manhãzinha, pois os presentes que ficavam no sapatinho só de manhã, ao acordar, se veriam. A alegria que era ver a miudagem de volta dos pequenos e parcos embrulhos, mas, tão cheios de amor e carinho que transbordavam a felicidade ao redor. Depois de verificarem que era mesmo aquilo que tinham pedido ao pai Natal, era uma luta para se vestirem antes de irem para a rua mostrar os presentes aos amigos e iniciar novo ciclo de brincadeiras com novos amores. Era uma verdadeira festa, com pouco se fazia muito e a felicidade espelhava-se naqueles pequenos rostos sem que precisassem de grandes e faustosos presentes.
A felicidade de ser criança naquela época não se compara com nada do que é agora. Tudo era novidade, por mais insignificante que fosse o presente era um presente, uma via para novas aventuras, para descobertas ainda por explorar, por incredulidade, por crença, era, em suma, a felicidade que se espalhava por pequeníssimas coisas. Aquele bairro vibrava por momentos na esperança da paz e harmonia entre todos os seres da terra, as crianças eram bem o exemplo do que poderia ser o mundo se os adultos não o estragassem. A Vila Alice no seu melhor, e com a criançada pelas ruas em plena brincadeira e felicidade.