28.02.18
Noite Escura acordou da letargia em que se encontrava, digerindo ainda os restos do jantar da noite de Natal, pela ordenança que o chamava ao comando, com urgência. De imediato se perfilou, sai da sala que servia de messe de oficiais, corre para a sala de briefing do comando.
A esta hora não é coisa boa com certeza. Não eram, duas horas da manhã, sabia que estava de prevenção para algo que ia ocorrer, mas não imaginava que seria naquela noite de Natal e, ainda por cima, àquela hora. De qualquer modo estava preparado, só lamentava ter comido tanto que lhe pesaria no estômago em caso de esforço maior que o necessário. Não haveria problema, com a adrenalina e a tensão pré-combate, logo faria a digestão e se evaporariam os restos do álcool ingerido, até ia mais aquecido que por aquelas paragens, a noite era bem fria.
Ao entrar depara-se com um ambiente de preparação de guerra, todos de fato de combate, camuflados, armados e preparados para partir para o terreno de operações. Numa breve alocução, são postos ao corrente do que se passa, o que esperavam aconteceu, como tal a reacção teria de ser imediata e enquadrada no que prepararam como uma grande operação de limpeza, iam aproveitar o momento, a oportunidade que o IN lhes oferecia de bandeja e limpariam tudo, muito para lá das fronteiras do território, com a vantagem de que ninguém reclamaria pela sua incursão, em território de outro país, já que o faziam em perseguição da guerrilha que os atormentava, para além de ser uma zona de muito baixa densidade populacional e portanto, estariam descansados quanto a qualquer oposição que se esboçasse contra a sua intrusão.
Noite Escura inteirou-se do que se passava. Afinal, a denominada operação que se preparava não era mais que uma reacção a um ataque, de uma escala nunca vista, diga-se de passagem, mas que redundaria numa perseguição impiedosa aos guerrilheiros. Deixaram-nos tomar a dianteira, atacar a vila, mesmo que pusessem em risco a vida dos seus habitantes e até dos militares ali aquartelados, mas o objectivo final era o aniquilamento dos contras daquela zona, a sua eliminação total, era, pois, necessário e mesmo condição essencial para o sucesso da operação o manter do segredo a todos os níveis. Sabiam que havia fugas, havia infiltrados que rapidamente fariam chegar as notícias às frentes de combate e aos guerrilheiros, quando lá chegassem, já a área estaria deserta. Era, pois, de importância extrema que se mantivesse o segredo.
Por tudo isto, para manter este segredo, nem o batalhão instalado em Rivuri havia sido informado pelo comando, que se esperava um ataque de grande envergadura pela noite de Natal, por parte dos guerrilheiros. Preferiram manter-se em alerta e preparados para fechar a tenaz após o início do ataque. Estava tudo preparado e a postos e agora iam fazer o seu papel, responder ao ataque com a eficaz ferocidade que lhes era possível. O seu papel era posicionarem-se rapidamente no terreno de operações para responder à ofensiva do IN. Estava em marcha.
Dali sairiam os hélios com as tropas especiais entre as quais se contava a companhia mais que experimentada de Noite Escura. Todos sabiam o que se esperava deles, todos sabiam qual o seu campo de acção, para onde se dirigiam, onde seriam largados, o que teriam de fazer. A Noite Escura e à sua companhia correspondia uma zona de alargada chana, capim demasiado alto, mas que teriam de gerir, tanto serviam a uns para se esconderem emboscados, como a outros que os perseguiriam.
A norte da vila, onde o declive se acentuava, exactamente no local escolhido para inicio do ataque à vila pelos guerrilheiros, seria aí, na chana que se espalhava pelo seu sopé que Noite Escura enfrentaria o IN, persegui-lo-ia, capturá-lo-ia se possível e progrediria até às margens do rio Kukudo. Nessa altura já as margens estariam dominadas pelos fuzileiros chegados ali vindos por norte, descendo o rio e por sul subindo-o. Estavam, assim, garantidos os meios para que a sua companhia o pudesse atravessar e prosseguir a progressão com perseguição na outra margem, já em território da Zazânia.
Os homens, cuja preparação era essencial para o tipo de combate em que se embrenhavam, vinham de acordo com o que se esperava deles, sabiam que dessas pequenas regras dependiam as suas vidas e, quantas vezes, dos seus companheiros. Não havia objectos brilhantes à vista, não eram portadores de comida, rações de combate, para que não lhes aumentasse o peso e diminuísse a mobilidade. A única coisa em que não poupavam era em munições. Cartucheiras invertidas e coladas por fita adesiva, para facilmente se substituírem, granadas, granadas ofensivas em quantidade, que as defensivas não eram para esta tropa e só levavam as que as normas obrigavam, as indispensáveis G3, nem melhores nem piores que as costureirinhas dos contras, talvez mais pesadas, mas, com os devidos cuidados, uma arma fiável e resistente.
Noite Escura, sentado no seu lugar no helicóptero, deu por si a pensar em anos passados, lembrou-se dos seus amigos, do que fugiu para a Europa e do que se passou para o outro lado, para o IN. O que lhe teria dado na cabeça para se decidir a ir defender a posição dos guerrilheiros, um branco, um branco não, um Branquelas que ainda era mais claro que um branco. E ele, ele a defender a posição considerada opressora. O mundo é mesmo estranho, o destino escolhe as coisas de forma perfeitamente aleatória e implica-nos em situações que temos dificuldade de entender. Onde estaria Branquelas? Por que zona andaria? Só queria que nunca se deparassem um com o outro, frente a frente, era uma desgraça, não sabia o que faria, ou mesmo o que Branquelas faria, estavam em pé de igualdade.
O céu escuro abriu-se em auto-estrada para uma nuvem barulhenta de inúmeros hélis que transportavam os comandos. Concentrados nas suas obrigações, calados, alguns rezando, outros, quem sabe, pensando nos entes queridos. Eram uma força de elite, uma força temível e temida pela guerrilha, mas não deixavam de ser homens como os outros, os que estavam do outro lado. Quantos amigos não se tinham separado por causa destas ideias políticas de separação, de criação de um estado, de um país novo, livre, independente, e gerido pelos seus próprios filhos. Quantos não se separaram definitivamente, deixando para trás infâncias felizes, brincadeiras e estudos em conjunto, amizades, quantos.
O escuro dentro dos hélis só era cortado pela iluminação dos aparelhos de navegação internos. Não se fumava, embora muitos, munidos de uma ansiedade extrema, de uma tensão arrasadora, bem lhes apetecesse acender o cigarrinho, mas não se fumava a bordo e muito menos em progressão de combate. No fim. No fim teriam o prazer de se deliciar com umas baforadas para acalmar o seu stress de combate, não sabiam quando seria o fim e nem sabiam quem chegaria ao fim, estas coisas são impossíveis de prever. Confiantes apesar de tudo, sabendo do seu valor como combatentes e como alunos que se esforçaram na aprendizagem da sobrevivência na selva e na guerra de guerrilha, uns especialistas era o que eram e por isso mesmo onde apareciam eram vistos como o terror das matas.
O objectivo tinha sido atingido, os homens iam ser largados no terreno. O primeiro héli aproximou-se baixou até cerca de dois metros do solo, de imediato foram saltando do seu ventre, um a um caíam ao solo, silenciosamente espalhavam-se garantindo um perímetro de segurança para os próximos a descer, o héli alcança a posição mais elevada, voa para longe do local onde outro irá pairar despejando a carga mortífera que vai varrer toda a área ao seu cuidado. Sai, vem outro e outro e outro, são tantos. Não esquecer que era uma companhia e estes aparelhos transportavam um limitado número de homens. Alcançaram a formação de voo, retiraram-se deixando no terreno, debaixo deles, sem serem vistos do céu onde se encontravam, uma centena de homens que agora só dependeriam de si, das suas capacidades e habilidades de vencer as hostes inimigas.
Deitados em posição de queda na máscara, uma posição que não era mais que estar de barriga para baixo, sobre o terreno e de arma aperrada e pronta a disparar, para se protegerem de algum ataque inesperado, assim estavam mais protegidos. Olhando para cima só descortinavam uma nesga de céu, um pouco do azul celeste que se apresentava nesta noite de um negrume assustador; bom para os camuflar. Dos lados, o capim era enorme, mais alto que um homem de pé e por entre ele, nada se distinguia. Podia estar algum guerrilheiro ao lado deles que não o veriam, mesmo os companheiros só sabiam deles pelos sinais convencionados e amplamente treinados só por eles reconhecível, um simples pio de coruja nocturna com uma entoação especial e disfarçável, este era o seu sinal, por ele se orientariam no meio destas chanas e saberiam sempre onde estariam os seus companheiros.
Toda a área estava agora coberta pelos homens de Noite Escura, aguardavam o que se pensava serem as rotas de fuga possíveis pois qualquer outra seria quase intransponível pelo acidentado do terreno e pela aproximação da cavalaria. O assalto à vila, estava a ser desbaratado pelas companhias de caçadores que imediatamente saíram do aquartelamento, os guerrilheiros a fugir desordenadamente para o único sítio possível a única rota de fuga que tinham encontrado. O aquartelamento, apesar de muito causticado pela artilharia de longo alcance, vinda do lado de lá da fronteira, tinha-se aguentado, embora com estragos consideráveis, mas não tinha permitido o seu assalto e destruição. O paiol, centro nevrálgico e cujo rebentamento arruinaria toda a sua defesa e a da vila, estava intacto. Tinha sido construído com uma margem de segurança maior do que a que se considerava necessária, fundo no terreno, a entrada labiríntica permitia a dissipação de qualquer rebentamento no seu perímetro. Segurança deste comandante que não brincava em serviço.
A população civil não tinha sofrido baixas, manteve-se fechada em casa e estas não foram violadas pelos guerrilheiros como estava decidido. A igreja mantinha-se de porta aberta e o padre no seu interior rezando, pedindo a Deus que poupasse os inocentes e que o seu rebanho daqui saísse sem mazelas. Sente passos rápidos atrás de si, volta-se, o guerrilheiro que já lá tinha estado estava à sua frente, não vinha sozinho, trazia outro consigo, ligeiramente ferido, apoiando-se no primeiro. À estupefacção inicial, reage de imediato, ajuda a carregar o homem para o interior da igreja, para a zona de sua habitação, onde ninguém entrava, nem entraria à procura deles. O primeiro guerrilheiro nada disse, mas o seu olhar sobre o padre era de agradecimento, entregou-lhe as armas, as suas e as do companheiro que o padre escondeu num alçapão sob as suas cabeças, junto ao telhado, as roupas foram substituídas por outras que lhes foram facultadas pelo pároco. Ficaram irreconhecíveis como guerrilheiros, agradecidos com a ajuda recebida, inesperada, mas cristã, afinal todos eram filhos de Deus.