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Caneta da Escrita

Temas diversos, Crónicas, Excerto dos meus Livros.

Temas diversos, Crónicas, Excerto dos meus Livros.


28.02.18

 

Noite Escura acordou da letargia em que se encontrava, digerindo ainda os restos do jantar da noite de Natal, pela ordenança que o chamava ao comando, com urgência. De imediato se perfilou, sai da sala que servia de messe de oficiais, corre para a sala de briefing do comando.

A esta hora não é coisa boa com certeza. Não eram, duas horas da manhã, sabia que estava de prevenção para algo que ia ocorrer, mas não imaginava que seria naquela noite de Natal e, ainda por cima, àquela hora. De qualquer modo estava preparado, só lamentava ter comido tanto que lhe pesaria no estômago em caso de esforço maior que o necessário. Não haveria problema, com a adrenalina e a tensão pré-combate, logo faria a digestão e se evaporariam os restos do álcool ingerido, até ia mais aquecido que por aquelas paragens, a noite era bem fria.

Ao entrar depara-se com um ambiente de preparação de guerra, todos de fato de combate, camuflados, armados e preparados para partir para o terreno de operações. Numa breve alocução, são postos ao corrente do que se passa, o que esperavam aconteceu, como tal a reacção teria de ser imediata e enquadrada no que prepararam como uma grande operação de limpeza, iam aproveitar o momento, a oportunidade que o IN lhes oferecia de bandeja e limpariam tudo, muito para lá das fronteiras do território, com a vantagem de que ninguém reclamaria pela sua incursão, em território de outro país, já que o faziam em perseguição da guerrilha que os atormentava, para além de ser uma zona de muito baixa densidade populacional e portanto, estariam descansados quanto a qualquer oposição que se esboçasse contra a sua intrusão.

Noite Escura inteirou-se do que se passava. Afinal, a denominada operação que se preparava não era mais que uma reacção a um ataque, de uma escala nunca vista, diga-se de passagem, mas que redundaria numa perseguição impiedosa aos guerrilheiros. Deixaram-nos tomar a dianteira, atacar a vila, mesmo que pusessem em risco a vida dos seus habitantes e até dos militares ali aquartelados, mas o objectivo final era o aniquilamento dos contras daquela zona, a sua eliminação total, era, pois, necessário e mesmo condição essencial para o sucesso da operação o manter do segredo a todos os níveis. Sabiam que havia fugas, havia infiltrados que rapidamente fariam chegar as notícias às frentes de combate e aos guerrilheiros, quando lá chegassem, já a área estaria deserta. Era, pois, de importância extrema que se mantivesse o segredo.

Por tudo isto, para manter este segredo, nem o batalhão instalado em Rivuri havia sido informado pelo comando, que se esperava um ataque de grande envergadura pela noite de Natal, por parte dos guerrilheiros. Preferiram manter-se em alerta e preparados para fechar a tenaz após o início do ataque. Estava tudo preparado e a postos e agora iam fazer o seu papel, responder ao ataque com a eficaz ferocidade que lhes era possível. O seu papel era posicionarem-se rapidamente no terreno de operações para responder à ofensiva do IN. Estava em marcha.

Dali sairiam os hélios com as tropas especiais entre as quais se contava a companhia mais que experimentada de Noite Escura. Todos sabiam o que se esperava deles, todos sabiam qual o seu campo de acção, para onde se dirigiam, onde seriam largados, o que teriam de fazer. A Noite Escura e à sua companhia correspondia uma zona de alargada chana, capim demasiado alto, mas que teriam de gerir, tanto serviam a uns para se esconderem emboscados, como a outros que os perseguiriam.

A norte da vila, onde o declive se acentuava, exactamente no local escolhido para inicio do ataque à vila pelos guerrilheiros, seria aí, na chana que se espalhava pelo seu sopé que Noite Escura enfrentaria o IN, persegui-lo-ia, capturá-lo-ia se possível e progrediria até às margens do rio Kukudo. Nessa altura já as margens estariam dominadas pelos fuzileiros chegados ali vindos por norte, descendo o rio e por sul subindo-o. Estavam, assim, garantidos os meios para que a sua companhia o pudesse atravessar e prosseguir a progressão com perseguição na outra margem, já em território da Zazânia.

Os homens, cuja preparação era essencial para o tipo de combate em que se embrenhavam, vinham de acordo com o que se esperava deles, sabiam que dessas pequenas regras dependiam as suas vidas e, quantas vezes, dos seus companheiros. Não havia objectos brilhantes à vista, não eram portadores de comida, rações de combate, para que não lhes aumentasse o peso e diminuísse a mobilidade. A única coisa em que não poupavam era em munições. Cartucheiras invertidas e coladas por fita adesiva, para facilmente se substituírem, granadas, granadas ofensivas em quantidade, que as defensivas não eram para esta tropa e só levavam as que as normas obrigavam, as indispensáveis G3, nem melhores nem piores que as costureirinhas dos contras, talvez mais pesadas, mas, com os devidos cuidados, uma arma fiável e resistente.

Noite Escura, sentado no seu lugar no helicóptero, deu por si a pensar em anos passados, lembrou-se dos seus amigos, do que fugiu para a Europa e do que se passou para o outro lado, para o IN. O que lhe teria dado na cabeça para se decidir a ir defender a posição dos guerrilheiros, um branco, um branco não, um Branquelas que ainda era mais claro que um branco. E ele, ele a defender a posição considerada opressora. O mundo é mesmo estranho, o destino escolhe as coisas de forma perfeitamente aleatória e implica-nos em situações que temos dificuldade de entender. Onde estaria Branquelas? Por que zona andaria? Só queria que nunca se deparassem um com o outro, frente a frente, era uma desgraça, não sabia o que faria, ou mesmo o que Branquelas faria, estavam em pé de igualdade.

O céu escuro abriu-se em auto-estrada para uma nuvem barulhenta de inúmeros hélis que transportavam os comandos. Concentrados nas suas obrigações, calados, alguns rezando, outros, quem sabe, pensando nos entes queridos. Eram uma força de elite, uma força temível e temida pela guerrilha, mas não deixavam de ser homens como os outros, os que estavam do outro lado. Quantos amigos não se tinham separado por causa destas ideias políticas de separação, de criação de um estado, de um país novo, livre, independente, e gerido pelos seus próprios filhos. Quantos não se separaram definitivamente, deixando para trás infâncias felizes, brincadeiras e estudos em conjunto, amizades, quantos.

O escuro dentro dos hélis só era cortado pela iluminação dos aparelhos de navegação internos. Não se fumava, embora muitos, munidos de uma ansiedade extrema, de uma tensão arrasadora, bem lhes apetecesse acender o cigarrinho, mas não se fumava a bordo e muito menos em progressão de combate. No fim. No fim teriam o prazer de se deliciar com umas baforadas para acalmar o seu stress de combate, não sabiam quando seria o fim e nem sabiam quem chegaria ao fim, estas coisas são impossíveis de prever. Confiantes apesar de tudo, sabendo do seu valor como combatentes e como alunos que se esforçaram na aprendizagem da sobrevivência na selva e na guerra de guerrilha, uns especialistas era o que eram e por isso mesmo onde apareciam eram vistos como o terror das matas.

O objectivo tinha sido atingido, os homens iam ser largados no terreno. O primeiro héli aproximou-se baixou até cerca de dois metros do solo, de imediato foram saltando do seu ventre, um a um caíam ao solo, silenciosamente espalhavam-se garantindo um perímetro de segurança para os próximos a descer, o héli alcança a posição mais elevada, voa para longe do local onde outro irá pairar despejando a carga mortífera que vai varrer toda a área ao seu cuidado. Sai, vem outro e outro e outro, são tantos. Não esquecer que era uma companhia e estes aparelhos transportavam um limitado número de homens. Alcançaram a formação de voo, retiraram-se deixando no terreno, debaixo deles, sem serem vistos do céu onde se encontravam, uma centena de homens que agora só dependeriam de si, das suas capacidades e habilidades de vencer as hostes inimigas.

Deitados em posição de queda na máscara, uma posição que não era mais que estar de barriga para baixo, sobre o terreno e de arma aperrada e pronta a disparar, para se protegerem de algum ataque inesperado, assim estavam mais protegidos. Olhando para cima só descortinavam uma nesga de céu, um pouco do azul celeste que se apresentava nesta noite de um negrume assustador; bom para os camuflar. Dos lados, o capim era enorme, mais alto que um homem de pé e por entre ele, nada se distinguia. Podia estar algum guerrilheiro ao lado deles que não o veriam, mesmo os companheiros só sabiam deles pelos sinais convencionados e amplamente treinados só por eles reconhecível, um simples pio de coruja nocturna com uma entoação especial e disfarçável, este era o seu sinal, por ele se orientariam no meio destas chanas e saberiam sempre onde estariam os seus companheiros.

Toda a área estava agora coberta pelos homens de Noite Escura, aguardavam o que se pensava serem as rotas de fuga possíveis pois qualquer outra seria quase intransponível pelo acidentado do terreno e pela aproximação da cavalaria. O assalto à vila, estava a ser desbaratado pelas companhias de caçadores que imediatamente saíram do aquartelamento, os guerrilheiros a fugir desordenadamente para o único sítio possível a única rota de fuga que tinham encontrado. O aquartelamento, apesar de muito causticado pela artilharia de longo alcance, vinda do lado de lá da fronteira, tinha-se aguentado, embora com estragos consideráveis, mas não tinha permitido o seu assalto e destruição. O paiol, centro nevrálgico e cujo rebentamento arruinaria toda a sua defesa e a da vila, estava intacto. Tinha sido construído com uma margem de segurança maior do que a que se considerava necessária, fundo no terreno, a entrada labiríntica permitia a dissipação de qualquer rebentamento no seu perímetro. Segurança deste comandante que não brincava em serviço.

A população civil não tinha sofrido baixas, manteve-se fechada em casa e estas não foram violadas pelos guerrilheiros como estava decidido. A igreja mantinha-se de porta aberta e o padre no seu interior rezando, pedindo a Deus que poupasse os inocentes e que o seu rebanho daqui saísse sem mazelas. Sente passos rápidos atrás de si, volta-se, o guerrilheiro que já lá tinha estado estava à sua frente, não vinha sozinho, trazia outro consigo, ligeiramente ferido, apoiando-se no primeiro. À estupefacção inicial, reage de imediato, ajuda a carregar o homem para o interior da igreja, para a zona de sua habitação, onde ninguém entrava, nem entraria à procura deles. O primeiro guerrilheiro nada disse, mas o seu olhar sobre o padre era de agradecimento, entregou-lhe as armas, as suas e as do companheiro que o padre escondeu num alçapão sob as suas cabeças, junto ao telhado, as roupas foram substituídas por outras que lhes foram facultadas pelo pároco. Ficaram irreconhecíveis como guerrilheiros, agradecidos com a ajuda recebida, inesperada, mas cristã, afinal todos eram filhos de Deus.


27.02.18

 

 

Havia no ar uma certa atmosfera de paz e sossego, um tempo de espera, uma preparação adequada ao espírito da época que se atravessava. Estava-se na véspera de Natal, do calendário judaico-cristão, que simbolizava o nascimento de Cristo, uma era de paz e boa vontade entre os homens.

A vida, no entanto, se regida por calendários e horários diversos, não se compraz com esta ou aquela data especial e, como tal, da atmosfera que se vivia, dentro de horas pouco restaria. Em pouco tempo, aquilo que era ou seria um dia de festa, para um lado, seria um dia de comemoração especial, para o outro, um dia de vitória, calculavam, um dia inesquecível. O tempo que aí vinha confirmaria, ou não, estas perspectivas.

Nos pontos-chave, destinados ao início do ataque e ao lançamento dos morteiros que Branquelas calculava fossem o toque de finados do aquartelamento e da vila sob domínio da actual potência, tudo estava a ser ultimado. Guerrilheiros a postos, conhecedores das suas posições e rotas de infiltração, armados com o melhor que o movimento conseguira, em termos de armamento, para consubstanciar este ataque como uma vitória retumbante e rapidamente aclamada como caminho para a vitória final, se a esperança se tornasse realidade.

Todos sabiam ao que iam, todos sabiam o que tinham de fazer e, apesar de, nestas coisas, haver sempre quem destoe dos princípios e ordens recebidas, confiava-se que o resultado se pautaria por uma subjugação da vila sem que resultasse num banho de sangue. E que bom seria, que boa publicidade resultaria deste acto de rebeldia se traduzir num quase encontro de amigos, sem mortos, sem violências gratuitas, que diria o mundo? Já não estaríamos a falar de guerrilheiros sanguinários e predadores da população, mas de homens com o sentido do dever e da honra perfeitamente alinhados.

Que campanha propagandista se faria ao redor desta vitória, sonhava Branquelas, acordado e para si. Estariam, certamente, perante um novo período daquela guerra interminável e que queriam levar ao seu ponto final, a governação da terra por quem nela tinha nascido, não por aqueles que de longe vinham governar o que lhes pertencia a eles, filhos da terra. “O que lhes pertencia a eles filhos da terra”, repetia Branquelas consciente de que ele, também nado e vivido naquela terra, não conhecendo outros horizontes que aqueles, era também um dos que queria que ela fosse libertada, que crescesse debaixo da governação dos seus filhos.

Com uma vitória como esta, pensava, os apoios internacionais voltariam à ordem do dia e seriam ainda maiores do que antes, estaria demonstrada a maturidade deste povo que pretendia tão-somente ser dono do seu próprio destino. Claro que os novos apoios que aparecessem e mesmo o reactivar e reforçar dos antigos seriam a alavanca de que necessitavam tanto, para recompor as suas forças e permitir o prosseguir da luta. Se as coisas se mantivessem desta forma, com as dificuldades em crescendo, não augurava nada de bom ao esforço de libertação que empreenderam e o mais certo era acabar por serem varridos do mapa dos movimentos de libertação com o epíteto do fracasso a pairar sobre as suas cabeças.

A hora estava marcada, quando menos o esperassem, na vila, seriam submetidos ao pior dos ataques alguma vez perpetrados contra ela. As famílias reunidas à volta da mesa, no repasto de Natal, alegres, conversantes e desfrutando de uma noite que era, para a maioria das gentes dali uma noite santa. No aquartelamento a rotina era quebrada uma vez por ano, este era o dia em que isso acontecia, a véspera de Natal. A soldadesca reunia-se no refeitório para uma refeição melhorada em que não podia deixar de pontuar o célebre bacalhau cozido com todos, regado com o não menos célebre sumo de uva.

Indiferente ao perigo que rondava o aquartelamento e a vila, a noite foi sendo preparada e a ceia servida. As conversas corriam alegres, versando, em grande parte, o fim da comissão que se aproximava a passos largos, mais meia dúzia de meses e estariam a ser rendidos. Os maçaricos teriam de aguentar as posições que tanto lhes custaram a consolidar, seriam informados de tudo, advertidos dos perigos e preparados para se manterem até que chegasse, também, a sua rendição, mas esta era deles, seria o último natal passado ali e, até agora, sem problemas de maior, a zona tinha sido varrida por inúmeras operações do batalhão e tinham conseguido afastar o perigo, já bastante debilitado, muito para lá das fronteiras conhecidas.

Estavam tranquilos nesta noite santa, tranquilos e confiantes de que nada de especial se passaria, mais a mais, não sabendo sequer que o comando chefe tinha preparado uma operação em grande escala e que havia sido apressada pelos rumores que obtiveram de preparação de ataque pelas hostes adversárias. A eles caberia responder, como de costume, a qualquer flagelação do IN, para isso tinha a sua segurança garantida, como de costume, pelas sentinelas estrategicamente posicionadas e em locais sempre diferentes de modo a não serem detectadas.

Meia noite em ponto, hora da criançada abrir as prendas que generosamente, e nós sabemos o que na altura significava este “generosamente”, o pai natal lhes colocava na chaminé, que no caso era substituída pelo sapatinho, nesta parte do mundo, chaminés só existiam nas cozinhas. Todos preparados para a corrida que se seguiria até aos locais destinados às prendas, todos em pulgas, prontinhos para que, ao sinal da primeira badalada, na igreja da vila, correrem para o seu sapatinho e ver o que lá encontrariam. Noite feliz, noite de felicidade para as crianças da vila e do resto do mundo.

Soou a primeira badalada, era o sinal, as crianças correram para os sapatinhos, mas este era também o sinal de início do ataque por parte dos guerrilheiros. A esta hora já se tinham posicionado e ao soar a badalada na igreja da vila, atravessaram o rio, sem oposição de espécie nenhuma, era uma zona onde a segurança não era rígida e só esporadicamente lá passava uma patrulha para ver se tudo estava bem. Contando com isso, os guerrilheiros tinham escolhido este local para a travessia do rio e primeiro confronto com a vila, a destruição de todos os barcos do ancoradouro, depois era só subir a pequena elevação e confrontar a vila com a realidade inesperada desta noite.

Os barcos foram destruídos à granada por alguns guerrilheiros escolhidos que só o fizeram depois dos seus companheiros terem subido a elevação e terem-se posicionado na orla da vila, uma extensa fila de homens se perfilaram para cobrir toda a zona. Ao avançarem, não ficaria nenhuma parcela da vila por cobrir. Ninguém deu por nada, todos estavam concentrados na celebração da noite santa. A população acordou para o ataque no momento da primeira badalada do sino da igreja, uns segundos depois, ainda as crianças corriam para os sapatinhos, ouviram-se os estrondos da destruição dos barcos, rebentamentos de granadas sucessivas que quebraram a calma e o silêncio da noite.

Estacaram por segundos, as crianças recuaram, os presentes ficaram no sítio onde estavam. Preparados que estavam para qualquer eventualidade, reagiram de imediato. Portas trancadas, luzes apagadas. Os que eram possuidores de armas de caça, logo as prepararam para qualquer eventualidade. Podiam ficar ali, mas quem entrasse, nos seus castelos, também ali ficava. De imediato, foram empurrados armários e tudo o que pudesse permitir alguma segurança, ainda que mínima, de encontro às portas e janelas. Evitaria ou, pelo menos, amortizaria a entrada de munições disparadas por quem estivesse ao ataque à vila. Apesar dos sinais, recusaram-se a pensar, sequer, que este ataque fosse uma coisa tão vasta e numa escala tão elevada como era, estavam habituados a flagelações, mas passageiras e feitas de longe, quase inócuas, mas não era assim desta vez.

No aquartelamento, a rotina do único dia diferente foi repentinamente cortada, o bacalhau ficou nos pratos e todos, sabiam o que cada um tinha de fazer e nisto se baseava a força do conjunto, se dirigiram aos seus postos de combate preparando-se para receber o ataque ou para sair em defesa da vila se fosse o caso. Logo se aperceberam que o ancoradouro tinha sido devastado e que ali tinham efectuado o ataque de que ouviram o som dos rebentamentos, mas não sabiam que a intenção era maior que um simples ataque ao ancoradouro e à destruição dos barcos que ali se encontravam, especialmente os zebros que lhes davam uma valiosa mobilidade no rio. As comunicações começaram a fazer-se sentir em direcção ao comando central, informavam do ataque, ainda não quantificado em homens, mas tinha sido inusitado, quanto a eles.

No comando central, estavam a postos e preparados, deram a ordem de resistência e iam a caminho forças suficientes para o rechaçar definitivamente. Encriptada, a informação foi entregue ao comandante do batalhão que ficou a saber nessa altura da envergadura da operação que só esperava este sinal para avançar. Uma nuvem de helicópteros levantou voo das bases onde se encontravam à espera da ordem do comando, ao mesmo tempo a tenaz que isolaria os guerrilheiros estava já em marcha e a fechar-se à sua volta. Estavam lançados os dados, a sorte sorriria aos vencedores, e os audazes teriam uma palavra a dizer.

A vila foi palco do avanço dos guerrilheiros, foram progredindo no terreno sem oposição ao mesmo tempo que se faziam ouvir os primeiros rebentamentos, a morteirada caiu à volta do aquartelamento, estavam a afinar a pontaria, dentro em breve cairiam bem dentro do aquartelamento, era uma questão de tempo. Nesse intermédio o batalhão já organizado, inesperadamente, separou-se, enquanto algumas companhias estavam destinadas à defesa do aquartelamento e do seu recheio, em que se incluíam as munições vitais à defesa de que eram responsáveis, outras saíram do aquartelamento, envolvendo a vila de modo a compartimentarem a guerrilha no seu interior e mais facilmente as conseguirem capturar. Isto Branquelas não esperava, apostou em que ninguém sairia do aquartelamento e lhes dessem margem de manobra dentro da vila, não aconteceu, este batalhão não era de maçaricos, estavam há muito habituados a todo o tipo de manobras que lhes aparecessem e o seu comandante era daqueles que achava que a melhor defesa era o ataque, portanto, respondeu ao que estava a acontecer de imediato e em força.

O primeiro guerrilheiro a entrar na igreja, de porta aberta, surpreendeu o padre ajoelhado frente ao altar. Voltou-se, ainda de mãos postas, olharam-se nos olhos e, ao invés de investir contra o padre, o milagre aconteceu, o guerrilheiro ajoelhou-se por segundos, benzeu-se e pediu desculpa ao padre. Que se recolhesse para local mais seguro que as coisas estavam más lá fora, que não se preocupasse, ninguém queria fazer-lhes mal, só pretendiam tomar a vila, de preferência sem correr sangue, apesar dos estrondos e da metralha. O padre ficou sem fala, esperava tudo, mas com isto não contava, um guerrilheiro crente em Deus e que até se preocupava com ele. Isto ia mudar toda a sua visão sobre estes homens. Doravante nada seria igual para ele. E logo ali se comprometeu em que a casa de Deus era desta gente também e estaria aberta a todos os que aqui se acolhessem.


26.02.18

 

 

Pequeno-almoço tomado. Quer dizer, esta refeição, a primeira do dia, aquela que todos dizem que deve ser forte e substancial para aguentar o seu início, não passava afinal de um copo de leite frio, era mais rápido, e uma carcaça com manteiga. Para eles era mais que suficiente que depois, durante o dia iam-se alimentando de tudo o que aparecesse, quer o que surripiavam de casa uns dos outros quer mesmo o que colhiam das árvores de fruto da vizinhança e do próprio quintal de cada um. Bons tempos em que a comida até crescia nas árvores.

De seguida, saíam espavoridos de casa em direcção à casa de Noite Escura, ali se encontrariam para dar início às actividades que tinham estabelecido para o dia e hoje era o arranjo e reparação dos carrinhos de rolamentos. Ia ser um dia em cheio, de manhã as reparações e à tarde, depois do almoço, eram as corridas, passeio fora, a ver como se comportavam os bólides. Claro que os percalços esperados eram mais que muitos, desde as contusões várias, se os carrinhos se viravam ou chocavam entre si, até às mazelas infligidas ao seu próprio vestuário, calções rasgados, sandálias estropiadas enfim, um dia em cheio que em norma acabava com mercurocromo a cobrir as feridas do dia. Destemidos, sem dúvida que, sabendo tudo isto, mesmo assim se aventuravam.

Branquelas é o primeiro a assomar-se á entrada da garagem, transposto o portão, sem medo do cão que era conhecido já e que, também em inúmeras brincadeiras, era parceiro de aventuras, este e os outros, que ninguém aceitava que o amigo tivesse um cão sem possuir um também, uma rápida olhadela e a verificação de que era o primeiro. Dirige-se à bancada de trabalho, apoia o carrinho de rodas para o ar, com a mão esquerda segura-o, com a direita dá uma roladela aos rolamentos, encosta o ouvido, há ali um barulhinho que não é normal. Como esperava precisava de ser oleado.

Procura a almotolia do óleo, dá um esguicho para o primeiro rolamento, roda-o com a mão direita, verifica o som dos rolamentos a deslizar sem o mais pequeno atrito que o impedisse de ganhar velocidade, encosta o ouvido, sorri, agora sim, assim está melhor. Repete a operação em todos os outros rolamentos. Roda-os um a um e sim, agora parece uma orquestra a funcionar sem nenhuma dissonância, vai limpá-los a todos esta tarde, pensa para si. Para se certificar, ainda coloca o carrinho no chão, pega na corda que serve para o puxar e ao mesmo tempo é também o guiador, o volante do carrinho quando parte com ele à desfilada, servindo para controlar o eixo da frente, o que faz as curvas, que aquilo é construído com todos os cuidados, para funcionar como se de um automóvel a sério se tratasse, puxa-o e ele responde de imediato à solicitação. Lindo, vai rolar até se fartar.

Nesse momento entra Meia de Leite, com o seu bólide debaixo do braço, preocupado com os seus rolamentos, também. Procede à mesma operação que Branquelas até se dar por satisfeito com o deslizar dos seus rolamentos. Este tinha uma novidade, tinha-lhe acrescentado uma inovação, um pedaço de borracha em cada um dos lados do eixo da frente, no sítio onde os pés assentavam e forçavam o eixo a virar para um ou outro lado. Agora assentava os pés em cima das borrachas, de pneu velho, recortadas com a forma dos seus pés, calcava-as para servirem de travão, se necessário. Claro que uma inovação destas era de imediato copiada pelos restantes construtores e Branquelas tratou de improvisar de imediato uns travões como aqueles, o facto de não ter as necessárias borrachas não era problema, pois de imediato substituiu o material, se não tinha a borracha necessária ao invento logo a ignorou e colocou em seu lugar uns pedaços de madeira mais leve e fina, também com o formato dos seus pés que fariam o mesmo efeito, só não travavam tanto, mas isso não era importante.

Quando Noite Escura apareceu já os dois amigos estavam ufanos dos seus bólides e orgulhosos da invenção aplicada. Então não esperaram por mim? Não sabíamos se demoravas muito ou não, fomos adiantando o serviço. E agora ficam a olhar para mim enquanto eu arranjo o meu? Nada disso, vamos ajudar-te e assim fica pronto mais depressa, a horas de irmos almoçar e depois arrancarmos todos juntos. Mas eu também quero colocar uns travões desses no meu. Vamos arranjar-tos, mas têm de ser iguais aos meus, de madeira, que não temos borracha para lhes pôr. Não faz mal se tu tens de madeira eu também posso ter, quando arranjarmos borracha, pomos umas pontas na madeira e até ficam melhores, em vez de serem todos de borracha. Estava resolvido o problema, mãos à obra que se fazia tarde.

Momentos volvidos, D. Genoveva aparece à entrada da garagem. Então que fazemos aqui metidos, nem parece vosso, com um dia destes e metidos na garagem. Estamos a arranjar os carrinhos para andarmos à tarde, nada de falar em corridas no passeio ou eram de imediato proibidos. Então está bem, depois vão a casa avisar as vossas mães que almoçam aqui hoje, tenho uns quitutes para vocês ao almoço. Maravilha entoaram os três em uníssono e quase concertados, almoçamos juntos. Deve ser bom, porque se a minha mãe diz que sim é porque é mesmo maravilha. Vamos então terminar isto e depois vamos a casa avisar que não almoçamos lá, vamos todos juntos para reforçar o pedido de autorização.

Lá prepararam o bólide de Noite Escura, oleado, com travões e pronto a rolar passeio abaixo. Era altura de se dirigirem a casa de Branquelas e Meia de Leite, as mães tinham de ser avisadas do seu almoço em casa de Noite Escura. Mãe, vamos almoçar em casa de D. Genoveva, ela convidou-nos. Têm a certeza? Não estão a fazer-se convidados? Vejam lá que eu depois falo com ela e logo me certifico se me estão a tentar enganar. Não, mãe, fomos mesmo convidados que ela diz que nos fez um almoço especial de que nós gostamos muito. Está bem, vão lá, mas vejam como se comportam, ou não torna a haver almoço para ninguém, juizinho. O ritual repetiu-se na segunda casa e, finalmente, todos em pleno acerto de autorizações dirigem-se para casa de Noite Escura, para a garagem a ultimar os preparativos automobilísticos.

Ambrósio, ouve-se na garagem, olham uns para os outros. Ambrósio diz Meia de Leite e desatam a rir a bandeiras despregadas, Ambrósio, repete e descambam na brincadeira uns com os outros por causa do Ambrósio que não era outro senão o Noite Escura que conheciam. Ambrósio, ouve-se agora mais claramente vindo da porta da cozinha de casa. Toca a pôr a mesa. Onde, mãe, na sala? Estás doido, no quintal, debaixo da mangueira que não quero que me sujem a sala toda. Já sei como vocês são e quando se juntam pior, e além disso sei que o que vos vou servir vão comer com as mãos e não arrisco pôr-vos na sala. Põe a toalha na mesa da árvore e comemos todos aí que vos faço companhia.

Todos se dirigiram à cozinha para ajudar Noite Escura a pôr a mesa, pratos, copos, talheres e as imprescindíveis gasosas fresquinhas, para ajudar a empurrar a comida. Esta seria levada para a mesa por D. Genoveva, quando estivessem todos sentados. Antes ainda tinham de passar pela mangueira de regar o jardim, não, não iam regar, iam simplesmente lavar as mãos que D. Genoveva era rigorosa nessas coisas, mesmo que comessem com as mãos, e ela sabia que isso ia acontecer, tinham de as lavar primeiro. E lá foram, uns atrás dos outros direitos ao esguicho de água da mangueira, esfregadas as mãos, lavadinhas e secas, sentaram-se nos lugares que estavam disponíveis. Com D. Genoveva faziam quatro, quatro pessoas à mesa, assim era mais fácil, cada um sentava-se num dos lados da mesa com a comida a meio desta para ser mais facilmente alcançada.

Aparece, à porta da cozinha, D. Genoveva, nas mãos a enorme panela tapada que deposita no centro da mesa para onde se dirigem de imediato todos os olhares dos mafarricos. Ninguém destapa a panela para não perder o gosto que eu vou buscar o resto. Esperem sossegadinhos. Reaparece com outra enorme panela, tapada, mas de onde sobressaía uma colher de pau. Olharam uns para os outros, esfregaram as mãos de contentes, bateram nas costas uns dos outros, já adivinhavam o que ali estava e salivavam de satisfação ainda nem tinham visto nada.

Sirvam-se do que quiserem, diz D. Genoveva, ao mesmo tempo que destapava as panelas. Atrás delas vinha um odor que não passava despercebido a tão tenras narinas, uma belíssima funjada de mandioca, a preferida, que iria acompanhar uma excelente moamba de galinha como só a mãe de Noite Escura sabia fazer. Que cheirinho, os quiabos a boiar no molho de óleo de palma, feito à base de dendém, era de comer e chorar por mais, a galinha, a cebola, o gindungo, até o alho, não faltava nada. Ainda lambiam os beiços.

Começaram bem, cerimoniosos, serviram-se de funge, com a colher de pau. Uma porção generosa para cada um, colocada ao canto do prato, de seguida a galinha e por cima, todo aquele molho, grosso, saboroso, uma delícia. Pão, Ambrósio, vai buscar o pão que está na bancada da cozinha. Imprescindível para se absorver o molhinho no final. As maneiras desapareceram no momento em que, olhando uns para os outros se decidiram a comer à maneira que melhor sabiam e de que mais prazer tiravam. Dois dedos metidos no funge, rodados, trazendo agarrados a eles uma porção da massa que depois, cuidadosamente, para não se queimarem, espetaram e rodaram no molho, depois de bem untada, levam-na à boca e, sem a mastigarem, engolem aquela coisa deliciosa, depois um naco de galinha coberta de quiabo, bem untada no molho. Deliciados com o almoço nem se importavam de estar tanto tempo à mesa.

Sabia que vocês iam gostar, por isso a preparei hoje, com tudo o que têm direito, na verdade também a mim me apetecia. Comam à vontade que não quero que sobre nada. Não se fizeram rogados e comeram, serviram-se outra vez e outra e tantas que ficaram de barriga inchada com tanta comida. Um arroz doce para finalizar e estava feita uma refeição e tanto, quase não se conseguiam mexer no banco corrido que servia de assento à mesa. Mesmo bom, disseram uns para os outros. Acho que não vou conseguir correr hoje, não conseguia sentar-me no carrinho com esta barriga, diz Meia de Leite, também eu, repete Branquelas, e eu nem vos digo, termina Noite Escura.

Não pensem que se safam assim, toca a levantar a mesa e a levar a loiça para a cozinha, só depois ficam livres para a brincadeira, deixem tudo no lava-loiças que eu depois trato disso, como se fosse preciso. Levar até à cozinha a loiça, ainda levavam, mas mais do que isso era uma tortura a que não queriam sujeitar-se, por isso, o melhor era fazerem o que D. Genoveva dizia sossegadamente para depois se pirarem. Hoje não haveria corridas, estava tudo estragado, também com um almoço daqueles quem aguentava? As corridas seriam substituídas por uma boa soneca debaixo da mangueira, ali mesmo, estirados nas esteiras que por ali permaneciam para casos mais urgentes, como estes, em que não conseguiam fazer mais nada até passar o efeito de uma digestão prolongada. Nada melhor que um bom sono reparador.


25.02.18

 

 

 

A manhã começou cedo, não tão cedo como o desejavam, mas ainda assim bastante cedo para o trabalho que os esperava naquele dia. Mais cedo seria impossível, as mães não o permitiriam, sete horas da manhã era o limite, antes disso era impensável. Primeiro saíam os pais e depois, só depois é que eles tinham permissão para alargar os seus horizontes de brincadeira.

Afinal estavam de férias, quem é que, estando de férias, se interessa por levantar cedo? E no caso deles nem era levantar cedo, era cedíssimo. Estes miúdos estão cada vez piores, de férias e a querer sair de casa de madrugada. Se as mães, educadoras, mas também protectoras, não conseguem controlar a sua ânsia não sei o que fariam os pais, sim os pais que nada sabem do que estes mafarricos magicam, que diriam se soubessem destas ânsias todas? Tínhamos cena pela certa, castigos para as férias e se calhar, muito bem dadas, uma série de galhetas naquelas caras até avermelharem.

Logo os três, sempre os três, aquilo, quando se juntavam até pareciam uma foto para a “psico”. Todos sensivelmente da mesma idade, mas cada um de sua cor, em comum só o facto de morarem muito perto uns dos outros e sobretudo, de morarem naquele bairro. O bairro da Vila Alice, adoravam o bairro e conheciam de cor os seus limites. Mesmo assim, frequentemente os ultrapassavam, então quando eram caçadas, não havia hipótese, tinham de passar para lá das fronteiras do bairro ou nada conseguiam caçar.

Hoje era um dos dias. Propunham-se passar o dia na caça, falamos de caça aos passarinhos que depois seriam fritos e devorados, caso apanhassem alguns. Eram mais as vezes que iam e vinham de mãos a abanar, que aquelas em que traziam qualquer coisa, mesmo quando traziam, por vezes um ou dois não eram suficientes para o trabalho que davam. Ainda assim, sobrava o excelente dia que passavam juntos nas brincadeiras próprias da idade, ambiente e país em que viviam; era imensa esta terra. Mesmo ultrapassando as fronteiras que conheciam nunca chegariam ao seu fim.

Na noite anterior, antes da hora da deita, eram gastos inúmeros minutos nos preparativos do material que necessitavam para passar o dia na caçada. As fisgas eram revistas, nalguns casos, substituíam-se os elásticos, cortados de uma velha câmara de ar de pneu velho que religiosamente guardavam para substituição de material danificado. Duas fisgas cada um, não fosse alguma rebentar quando mais precisavam dela, não havia essas modernices de fisgas de metal como agora, aquelas eram todas feitas por eles, de uma ponta a outra, orgulhavam-se do seu trabalho manual. Construí-las também era brincadeira, ufanavam-se com a procura de pequenos pedaços de couro, cortavam, desenhavam e amarravam-no à forquilha, em forma de ípsilon, com as tiras de elástico. Experimentavam-nas e cada um deles procurava sempre dar um cunho pessoal à sua arma, com entalhes na madeira da forquilha, com a inscrição dos nomes, forrando-as, para que as mãos as segurassem mais confortavelmente, enfim, inovações, sempre que possível.

Uma preocupação latente nestas preparações eram os cantis, ali levavam o seu quinhão de água que lhes devia durar o dia inteiro, preocupavam-se em enchê-los de água gelada, tirada da “geleira”, frigorífico, dizemos agora. Não adiantava de muito porque eles eram de plástico, fracos e não conservavam nem o frio nem o calor, serviam apenas para conter a água que lhes faria falta durante o dia. Todo este imenso material, fisgas e cantil, ficavam prontos de véspera para que no dia seguinte não se perdesse um minuto que fosse do tempo destinado ao gozo do dia.

A noite já era passada a sonhar. Sonhavam com a procura dos passarinhos, no subir às árvores para verificar os ninhos e de caminho apanhar algum fruto para irem comendo. Nos casos mais desesperantes, quando a caçada falhava e nada encontravam para perseguir, o dia era passado na procura de um bom lugar, de preferência em cima de alguma árvore de copa larga. Abrigavam-se do sol e ao mesmo tempo tinham um local excelente para deglutir tudo o que apanhavam para comer. Era vulgar estas caçadas serem reduzidas a umas patuscadas de mangas, cajus e até gajajas, estas últimas, muito apreciadas, eram deixadas para último lugar e só com cuidados extremos lhes chegavam. Era um fruto amarelo que deixava uma mancha na roupa impossível de retirar, como tal, o melhor era não chegar a casa com a roupa marcada por elas ou havia sérias possibilidades de haver sopapo.

Se a árvore era frondosa, tinha um bom espaço para se encaixarem nela, então, até podiam jogar às cartas. Quando falhava a caçada, as cartas eram um bom substituto e, assim, não perdiam o dia.

A finalidade não tinha de ser rígida, podiam sair para a caça mas, derivavam facilmente para qualquer outra aventura que, num repente, algum deles alvitrasse como melhor que correr atrás de passarinhos. Um desses dias aconteceu que a caça se fazia mais difícil que nos outros, resolveram que a árvore das gajajas era um bom poiso e por lá ficaram, como diria o cantor, “comendo a fruta e deitando os caroços para o chão”. Isto não era uma falta de educação, não, isto era conhecimento puro de como funcionava a natureza, daqueles caroços, mais tarde, surgiriam novas plantas, árvores frondosas e frutos apetitosos. Fazia, pois, todo o sentido que os caroços da fruta que os saciava viessem depositar-se no chão, na base daquela frondosa árvore. Quem sabe, os seus filhos, os filhos dos seus filhos, viriam também a deliciar-se com uns momentos de prazer à sombra dos caroços que agora atiravam ao chão? Sabedoria africana, sem dúvida, filosofia de uma vida de coisas simples.

Entre as chupadelas da gajaja, Branquelas, sai-se com uma questão filosófica e essencial para as suas amizades. Afinal, há tantos anos que se conheciam e nenhum sabia o nome dos outros, como apareceram as alcunhas? Porque se tratavam por elas em vez de usarem os seus próprios nomes? Que ideia mais maluca, Branquelas, Noite Escura, Meia de Leite, mas que raio, não seria melhor chamarem-se pelos nomes mesmo? Olharam-se sem resposta para um tema tão escaldante, mas resolveram filosofar sobre a questão.

Olha que até estão bem-criadas, estas alcunhas, tu branquinho como a cal das paredes, logo Branquelas, assenta-te como uma luva, diz lá então como te chamas de verdade. Branquelas ri-se e responde à questão, Frederico, assim se chamava desde que nasceu. Frederico? Que coisa difícil de pronunciar, prefiro chamar-te Branquelas, é mais amigável, é o que nós somos, amigos. Então e tu como te chamas? Eu, bem eu sou Josué. Eh, pá, esse foi tirado da Bíblia quando a tua mãe te foi baptizar, eu também prefiro chamar-te Meia de Leite, é muito melhor. Agora só falta saber o teu, Noite Escura. Bem eu chamo-me Ambrósio. Ambrósio? Ainda bem que não nos tratamos por esses nomes, já viram o gozo que era quando nos ouvissem tratar por isso? Nem pensar, ficas mesmo Noite Escura que é melhor e até condiz contigo. Ó Ambrósio isto, ó Josué aquilo, ó Frederico isto. Que gozo, não, já nos gozam o suficiente por sermos os putos da rua e chega.

Na verdade, nenhum se lembrava de quando começaram a tratar-se assim, mas também concordavam que isso não era importante para que a amizade fosse posta em causa. O que era verdadeiramente do interesse comum, aos três, era a maneira como se entendiam sem que para isso fosse necessário saber os nomes de baptismo de cada um. Isso é coisa de gente grande, gente que nem se entende entre ela e querem exportar para as nossas cabeças matérias de complicação da vida. Somos amigos, verdade? Cada um de nós fará tudo pelos outros, não é verdade? Então que interessam os nomes? Já temos e até são melhores, foram criados por nós, são só nossos e não admitimos que mais ninguém os use.

Que sim tudo bem, podia ficar como estava, mas não custava nada sabermos quem é quem quando alguém, que não eles, os chamasse. Então, nesse caso vamos conhecê-los só para não dizerem que somos burros, que nem nos tratamos como as pessoas. Só me interessa saber quais são porque continuaremos a tratar-nos como sempre, alvitra Noite Escura, é assim que deve ser entre amigos, nada dessas coisas pomposas de nomes disto ou daquilo. Sabemos de onde viemos, quem é a nossa família, mas também sabemos que temos uma das coisas mais preciosas da vida, a amizade, essa não tem alcunha nem outro nome que não seja amizade mesmo.

Noite Escura, vê lá se chegas a esse galho e saca-me essa gajaja que está tão amarelinha que se ri para mim. Estica-te que eu seguro-te, mas não a esmagues que tem um ar apetitoso. Hum! Está mesmo boa, queres uma dentada? Podes dar, já que ma foste buscar eu concedo-te essa dádiva. Não, já comi que bastasse. Sabes o que agora caía bem aqui, para compor a frutaria? Umas maças da Índia. Nem penses, hoje o Toninho estava em casa e sabes como ele é, o gajo é doido e fica pior quando lá vamos roubar-lhe as maçãs, corre-nos à pedrada e o pior é que tem cá uma pontaria que até arrepia, pedra que atira acerta de certeza e quem sofre são as nossas cabecinhas. Não, hoje, nada de maçãs da Índia. Quando ele não estiver em casa e ele tiver aulas à tarde, aí sim, vamos lá e limpamos-lhe a árvore toda, vai rebentar de raiva.

Mais uns joguinhos de cartas e lá se ia passando o dia. Quando se sentem cheios da folia, cansados do trepa e desce das árvores, da procura da fruta, sim porque passarinhos nem vê-los, andam arredios, começam a preocupar-se com as horas do regresso. Que horas são, pergunta um, não sei, não tenho relógio. Então como vamos saber quando temos que regressar? Ninguém tem uma porcaria de um relógio, o resultado vai ser funesto quando chegarmos a casa. Não se preocupem cambada, basta olhar para o sol, até parece que nunca aqui estiveram, seus medrosos. Quando o sol chegar ali ao telhado do Macambira é hora de saltar da árvore e pormo-nos a caminho que chegamos a tempo e assim já não há festa hoje e até conseguimos mostrar-nos bonzinhos e cumpridores, vão ver que amanhã não nos recusam nada.

Por falar em amanhã, o que vamos fazer? Vamos combinar já para não haver desencontros. Que tal umas corridinhas de rolamentos? Pode ser, mas tem de ser só à tarde, ainda tenho que arranjar um dos rolamentos que não está a rodar muito bem, se não consigo oleá-lo tenho de lhe pôr um novo. Com este trabalho todo vou levar a manhã inteira a arranjá-lo. Não precisas de estar sozinho que nós vamos para a tua garagem e ajudamos-te, que raio de corrida seria esta se não viesses connosco, até pensariam por aí que nos tínhamos zangado. Não, vamos para a garagem e tratamos de te ajudar e de caminho afinamos os nossos também, precisam de um lubrificante nos rolamentos para deslizarem melhor.

Então está combinado, logo de manhã na garagem, que está sempre aberta, quem chegar primeiro pode entrar e começar a trabalhar no assunto. Agora vamos andando que o sol já se pôs no Macambira e ainda temos de atravessar a madame Bergman, fugindo àqueles animais que nos perseguem sempre que nos vêem, um dia ainda me viro a eles. Está calado, são mais velhos, maiores que nós e muito brutos, quem se atreve a enfrentá-los? Olha este, és mesmo uma Meia de Leite, então nunca ouviste falar em estratégia? Sim, estratégia, preparar-nos para os enfrentar, definir um plano, ver como os podemos vencer e depois criar a estratégia apropriada. Vais ver, apanhamos um a um e damos-lhes uma tosa que eles nunca mais se metem connosco.

Tarde a findar, rua à vista. Saciados do dia de aventura, cansados e prontos ao banho, jantar e dormida que não há outras distracções, essa coisa de televisão ainda não chegou aqui, felizmente. Depois do jantar há sempre lugar a conversa entre os vizinhos, enquanto se bebe uma cerveja fresquinha põe-se em ordem os assuntos pendentes do dia de trabalho, conversa, troca de opiniões e o apanhar de um fresquinho da noite, há lá coisa melhor?


24.02.18

 

Antes mesmo de se dar ao trabalho de ir dar o nome, a resolução estava tomada, não queria nada daquilo para a sua vida e, apesar do desgosto de deixar familiares e amigos, os três amigos da vida airada, os três mafarricos do bairro, tinha que ser.
Um pequeno saco de viagem, uma mochila vulgaríssima, era o suficiente para encafuar as suas imbambas e pôr-se ao fresco, que o mesmo é dizer, dar de frosques. Pôs em marcha o seu rudimentar plano de fuga. Não queria dar nas vistas e como tal, viajou nas carreiras de autocarro normais pelo interior do país.
Subiu a zona norte até sensivelmente a meio, pernoitou nessa cidade, capital do café, zona que fora quente, mas em que se sentia agora uma relativa acalmia. Comeu na pensão onde se alojou. Quando questionado, a resposta era invariavelmente a mesma, vou visitar familiares no norte do país. Na verdade, Meia de Leite, não tinha ninguém de família ou sequer amigos para aquela zona, mas era a que melhor possibilitaria a sua saída do país.
Nessa noite, delineou a estratégia para se aproximar da outra povoação que se situava já nas fraldas da fronteira. Para aí chegar já tinha de haver mais cautelas, as estradas eram de mato cerrado e as deslocações faziam-se em comboio militar. A mesma desculpa que dava, sempre que o questionavam, serviu-lhe para arranjar um lugar na viagem até ao destino que pretendia.
Não foi agradável, sentado na carroçaria de uma Berliet Tramagal, assim denominada por ser montada em Portugal, na indústria metalo-mecânica do Tramagal, com base num protótipo da fábrica francesa Berliet cujo modelo era o camião gazelle. Fortes, com motores potentes e tendo sido adaptados e melhorados, pela indústria portuguesa, eram os ideais para o transporte de homens e mercadorias pelos matos fora. Desta feita, Meia de Leite, foi também transportado para a vila que tinha como objectivo atingir.
Lá chegado, não querendo ser notado, foi disfarçando a sua presença durante uns dias. Ao mesmo tempo que estudava a rota de fuga mais adequada, ia-se informando, junto dos nativos da zona, das possibilidades de atravessar a fronteira sem ser notado. Para dar credibilidade à sua presença, começou lentamente a procurar pelos ditos familiares que presumivelmente ali viviam. Perguntou oficialmente, no posto da administração, não, ninguém conhecia aquele nome ali na vila mas poderia estar numa das aldeias dos arredores. Questionou as autoridades da possibilidade de se deslocar a essas aldeias na busca das pessoas que procurava, acederam a autorizá-lo, por sua conta e risco.
Foi a abertura que mais desejava, estava livre para se ir introduzindo para o interior sem dar origem a desconfianças. Começou pela aldeia mais próxima, onde vasculhou tudo o que eram hipóteses de dar o salto, ao fim do dia regressava à pensão na vila e assim passava por ser um simples cidadão procurando familiares e nada mais, embora a polícia política o tivesse marcado e o mantivesse debaixo de olho. O facto de diariamente regressar à vila e à pensão, dava-lhes algum descanso e desse modo deixavam-no deambular pelas aldeias na sua procura incessante.
À terceira visita atinge o alvo. Encontrou quem o ajudasse a passar para o outro lado. Alguém que fazia daquelas passagens um modo de vida. Conforme levava para o outro lado da fronteira quem queria fugir daqui, também trazia de lá os que queriam entrar pela sorrelfa. Era, nada mais nada menos que um angariador de homens para o movimento que procurava os naturais e fugitivos para engrossar as suas hostes. Havia um problema que teria de resolver de imediato, as passagens não eram todos os dias e só quando a segurança estivesse garantida se faziam. Ora a segurança era saber precisamente que a tropa do aquartelamento da zona se afastava dali para alguma operação, deixando-os livres para circular pelos caminhos da mata sem serem incomodados.
Acontecia que nesse preciso dia haveria uma passagem para o outro lado e se queria ir tinha de ser hoje que não se saberia quando era a próxima. Meia de Leite, hesitou, tinha os seus pertences todos na pensão. Consigo só trazia os documentos, sem os quais não poderia circular, e o dinheiro de que nunca se separava, era pouco, mas mesmo esse pouco tinha de ser o suficiente para se ir aguentando. Pensando melhor, os pertences que deixava eram somente roupas e um par de sapatos, um livro e pouco mais. Não, já não voltava à vila, ia arriscar hoje mesmo.
Confirmou ao passador a sua intenção de ir hoje mesmo com eles, pagou-lhe uma pequena quantia pelo trabalho de guia e esperou junto a uma das cabanas que chegasse a hora e essa só viria pelo anoitecer. Sentado à sombra da cabana, ia remoendo os pensamentos, que diriam os dois amigos da sua fuga, que pensariam dele? Nada lhes dissera, que estas coisas para serem bem-sucedidas não podem ser divulgadas nem aos mais próximos. Os mais próximos, para além de Noite Escura e Branquelas, eram os seus pais. Que iriam pensar? Em que aflições os tinha metido, e será que não eram incomodados pela polícia? Tinha dúvidas, mas como nada sabiam, nada poderiam dizer e acabavam por largá-los, no entanto a preocupação para com o filho, essa ficava sempre presente.
Apesar de tudo, não querendo implicar os pais na sua fuga e aproveitando para lhes deixar um sinal da sua decisão, escreveu-lhes antes de se pôr em marcha da vila anterior. Sabia que lhe dava tempo para estar longe quando a carta fosse recebida ou se fosse interditada por alguém, que a polícia não dormia em serviço e estava sempre atenta. Se na cidade a correspondência demorava cerca de uma semana a ser distribuída, depois de colocada no correio, uma carta que fosse dali de tão longe demoraria, no mínimo, duas semanas. Estava descansado quanto a isso.
Assim que estivesse em segurança, do outro lado, escreveria com mais calma e pediria que contassem a peripécia aos dois amigos e aos restantes familiares também, iria dando notícias.
O seu objectivo final era a Bélgica, país com tradição na recepção e acolhimento de refugiados políticos, ainda por cima ex-colonizador deste para onde se propunha fugir. Estava certo que depois de atravessar a fronteira seria fácil conseguir uma passagem para lá. Ali refazia a vida, começando do zero, com a ajuda tradicional que sempre se dava a este tipo de situações, os países de acolhimento apoiavam sempre os refugiados políticos, nomeadamente os que vinham de países africanos, sabe-se lá se não era para espiarem a culpa da colonização que ali tinham feito, mas ajudavam, era uma verdade.
Vindo de um país colonizado por uma potência que não largava, nem queria ceder o país a uma independência e em que, já poucos acreditavam ser possível, dada a estratégia do colonizador. Estratégia bem conseguida e que vinha sendo aprimorada de tal forma que se sentia até no recrutamento de guerrilheiros para os movimentos de libertação, cada vez com mais dificuldade e com menos homens do que pretendiam. As pessoas estavam cansadas da guerra, cansadas de anos de mato, de fugas constantes aos militares bem equacionados no terreno, cansados de privações e de fome. Acabavam por se entregar e na grande maioria, ser enquadrados em programas de reabilitação e ajuda para se fixarem com as famílias em zonas determinadas.
Chegou a noite e meia dúzia de homens e mulheres foram aparecendo e juntando-se à volta da cabana. Chega o guia que lhes dá uma série de advertências para sua segurança e do próprio grupo. Desde logo, o silêncio era peça fulcral nesta caminhada, ninguém falava, fosse por que motivo fosse, em caso de necessidade bastava um toque no companheiro da frente, e assim sucessivamente para se parar e verificar o que quer que fosse. De outra forma poderiam ser detectados a quilómetros.
A mata tem destas coisas, um pequeno ruído, fora dos que são ali habituais é de imediato detectado por quem está habituado a vivê-la, muitos dos guias do exército eram peritos nesta matéria, como tal todo o cuidado era pouco. Comer estava fora de questão, só nos locais estabelecidos para o efeito. Da mesma forma que qualquer ruído era facilmente detectado, também a comida, os cheiros deixavam um rasto imenso, para além de serem detectados pelo cheiro a comida ainda podiam fazer pior, atrair os animais selvagens que vinham na rota do cheiro e de que dificilmente se livrariam sem baixas.
Se tudo correr bem, dizia o guia, estaremos do outro lado da fronteira por volta das seis horas da manhã, à meia-noite, paramos para comer qualquer coisa leve. Não se preocupem que no local onde paramos estará alguma coisa para comer, coisas que não cheiram de forma diferente aos odores da floresta. Era uma garantia, iam ter uma paragem a meio e até comeriam. Puseram-se a caminho em fila indiana, uns atrás dos outros para que ninguém se afastasse ou se perdesse.
A abrir o cortejo ia o guia seguido da meia dúzia de fugitivos que tinham, a fechar a fila, um segundo guia, isto era trabalho para duas experientes pessoas que conheciam o trilho e os outros de emergência, se fosse necessário fugirem do principal, Meia de Leite caminhava logo a seguir ao guia. Não escolhera esta posição nem lhe tinha sido indicada, postou-se naturalmente ali e seguiu assim mas durante a caminhada, pensando bem, era a melhor, se qualquer coisa corresse mal estava mesmo atrás do guia e ninguém melhor que ele para ser seguido nalguma fuga que ocorresse, conhecia bem o terreno que pisava, por outro lado, dada a sua juventude e compleição física, conseguia servir de exemplo de abnegação para os que seguiam atrás de si e ainda dar uma ajuda a algum que dela necessitasse.
Meia-noite, fez-se a paragem, meia hora para comer e descansar as pernas que não havia tempo para mais. A comida lá estava com alguém que a trouxera, simples pirão, já frio, suficiente para retemperar as forças gastas até ali. Uns esticados no chão, estendo as pernas e descansando o tronco, outros sentados, mas todos silenciosos, não se tinha ouvido uma mosca até ali e assim devia continuar a ser. Retomada a caminhada na mesma ordem de posições. O que surpreendeu Meia de Leite, durante a primeira parte do percurso, foram as mulheres que ali iam, duas mulheres, uma, pura aldeã, a outra com ar de gente da cidade, politizada, ia com certeza engrossar a fileira de algum movimento, não lhe importava, só queria chegar ao seu destino, mas admirava a sua resistência, caminhavam silenciosas, passo decidido e sem queixumes. O mesmo anseio pensou, sair dali o mais depressa possível.
A noite na mata era assustadora, nunca tinha estado metido numa zona de pura floresta onde nem a lua se via, tudo era vegetação. Ao longe um rugido, um piar de mocho mais perto e os macacos saltando de ramo em ramo com a tradicional algazarra, o que era bom. Significava que não eram assustados por nada estranho, se deixassem de os ouvir, bem como aos outros sons da floresta, então tinham de se preocupar porque algo ou alguém andaria por perto e os remetia para uma segurança de que o silêncio era primazia, assim até era agradável, ajudava-os a caminhar melhor.
Cinco horas da manhã. A caminhada detém-se à entrada de uma clareira, o guia faz sinal para se agacharem, dá uma vista de olhos, sinal de silêncio e durante uns minutos nada se moveu por ali. Os pássaros andavam de um lado para o outro, esvoaçando sem medo, bom sinal, não haveria problema a atravessá-la pois nada se vislumbrava que pudesse impedi-lo. De qualquer forma, por medida de segurança, passaria um de cada vez e espaçados por uns minutos, ia atrasar a caminhada mas era mais seguro.
Passou o guia e ocultou-se ao chegar ao lado contrário, passados uns minutos em que verificou a zona, faz sinal para avançar outro e outro e outro. Passaram todos em segurança, recompuseram a fila e continuaram com passos mais largos na tentativa de recuperar este pequeno atraso. Vinte minutos, parece pouco, mas para quem queria atingir a fronteira antes do dia estar completamente claro era um tempo precioso. Assim sendo, sacrificaram-se mais um pouco, afinal estavam muito perto de atingir os seus objectivos; meia hora, sensivelmente, separava-os da liberdade que tanto ansiavam.
Finalmente um sinal. Um marco precário mas indicativo que acabava ali o país e um passo mais à frente começava outro. Deram o passo. Estavam finalmente fora do país, mas ainda tinham que caminhar mais um pouco pois ainda assim, mesmo fora do país, estavam demasiado perto da fronteira para se considerarem seguros. Não era a primeira, nem seria certamente a última vez, que o exército perseguia alguém para lá do marco final do país. Andaram mais meia hora e agora sim, via-se uma povoação ao fundo do vale, estavam definitivamente fora de perigo.
Meia de Leite, abraçou-se ao guia e o mesmo fizeram os restantes fugitivos. Despediram-se efusivamente e dirigiram-se cada um para o seu destino. Ele sabia o que tinha de fazer, procurar uma organização internacional a quem pediria ajuda para ser repatriado para a Bélgica, o seu destino final, o seu início da nova vida, assim o fez.


23.02.18

 

 

 

Não estava descansado. Noite Escura tinha ouvido o zunzum sobre a tal grande operação que, depois, foi formalmente desmentida. Mesmo assim o coração batia-lhe desgovernado, sabia que estaria sempre nas primeiras linhas para operações deste tipo e, portanto, numa altura em que os desmentidos não faziam mais que confirmar o que desmentiam, sentia-se nervoso, não confiava.

Para alargar a desconfiança tinham sido cortados os passes de saída para fim-de-semana o que significava, numa primeira fase, uma preparação para prevenção. Na verdade, eram só dúvidas e sinais de que, desde o desmentido da grande operação não mais se ouviu falar, mas os sinais avolumavam-se. A ordem de revisão imediata e apetrechamento dos “burros do mato” era outro dos sinais e este mais grave, significava uma larga escala em qualquer operação.

Noite Escura e a companhia que comandava, por norma, operavam em terreno firme, sem os “burros de mato”; eram embarcados, por grupos de cinco, em hélios que os transportavam e depositavam nos locais de início de operações ou mesmo a meio de um teatro de guerra já em acção. A preparação das viaturas significava uma longa jornada de marcha que terminaria no exacto local de onde partiriam já em grupos de combate para o interior da mata, para a zona quente.

Megone era uma vila assoberbada pela crescente dinâmica de transformação a que todo o país estava a ser sujeito, também aqui se verificava esse fenómeno. Pessoas que chegavam e se instalavam, criação de novos comércios, zonas de ócio e lazer a ser criadas e o indispensável aquartelamento. Um dos que albergava uma quantidade razoável de militares que tinham por missão a segurança de toda aquela imensa zona do Leste, cheio de chanas onde o capinzal crescia e escondia os perigos que consumiam as energias de quantos velavam pela boa continuidade da tranquilidade de quantos ali viviam.

Era aqui que os “burros do mato” estavam a ser preparados ao pormenor. Revisão de motores, pneus e respectivas correntes que o lamaçal era traiçoeiro, abastecimentos de víveres e munições, rádios, obuses, uma parafernália de material que poderia a qualquer momento ser necessário. O patrulhamento ao redor da vila era assegurado pelos militares do batalhão ali instalado e os especiais, mantinham-se alerta, mas afastados da normal azáfama do quartel. As companhias especiais aguardavam qualquer coisa que não sabiam bem o quê, só sabiam que não tinham saídas até nova ordem.

Noite Escura, como comandante de uma das companhias de comandos, ali estacionada momentaneamente, foi convocado para uma reunião, juntamente com os outros comandantes de companhia, tanto especiais, como os caçadores do batalhão do aquartelamento. A messe dos oficiais era pequena para tanta gente, mas lá se conseguiram encaixar, mais ou menos apertados. Com surpresa, depararam com o general comandante da região sul e de todo o seu estado-maior, a preparar-se para dirigir a reunião.

Foram apresentados breves dados das infiltrações do “IN”, pelo comandante do batalhão, que indicavam que, apesar da perseguição e combate que lhes era dado, com enormes baixas infligidas, continuavam a suceder infiltrações e a dirigir as suas acções, em grande parte, ao ataque e minagem das picadas por onde se escoava a seiva do trabalho da região que, por esse motivo, era constantemente impedido de se levar avante pelos inconvenientes a que estavam sujeitos, as minas que danificavam as viaturas e a consequente pilhagem antes que, qualquer reforço, militar, acorresse em seu auxílio.

Para esta situação, foi delineado pelo estado-maior general uma operação conjunta, exército, marinha e força aérea para limpeza profunda da região. Ficaram boquiabertos, afinal o tal desmentido era simplesmente a confirmação que algo se preparava e era de grande envergadura. Isso mesmo notaram, não pelo aparato militar, que se procurava manter baixo, mas pela concentração de homens que iam chegando de diversos pontos do país, todos transportados por helicópteros. Para além dos especiais já ali estacionados outros chegaram para reforçar a força de intervenção.

Distribuídas as responsabilidades e tarefas de cada companhia, foi-lhes recomendado o estado de alerta total que em qualquer altura seria dada ordem de marcha, teriam de ter todo o equipamento preparado e estar prontos para que o avanço fosse rápido. A operação que se denominou “ventos de leste”, teria como objectivo a formação de uma tenaz de limpeza à volta de Rivuri, e poderia mesmo, em caso de necessidade, entrar pela Zazânia em perseguição e destruição dos acampamentos já referenciados e mais os que pudessem ser descobertos. Era uma zona quase sem população nativa e por isso mesmo muito usada pela guerrilha para se entrincheirar e passar despercebida, utilizando-a como base dos ataques efectuados à volta de Rivuri e nas matas que se situavam entre esta e alguns quilómetros antes de Megone.

Uma zona vasta, mas que seria limpa pelos caçadores do batalhão depois de iniciada a operação em que as rotas de fuga seriam cortadas pelas tropas especiais, deixando os guerrilheiros encurralados e sem possibilidade de escape. Para que isto funcionasse tornava-se necessário que a coordenação não falhasse um milímetro. Os caçadores sairiam do batalhão dois dias antes, com toda a parafernália necessária a uma operação, nos “burros do mato” que seriam também o veículo de transporte dos homens. Eram veículos todo o terreno que tinham uma grande mobilidade e garantias dadas, já em outras operações, de serem fiáveis nas manobras que se esperava deles.

Para o transporte dos soldados eram do melhor, embora de velocidade baixa a resistência era ilimitada. Os homens iam sentados de costas uns para os outros, mas com uma visão bastante larga de toda a chana. Iam altos e podiam vislumbrar qualquer movimento que se deparasse pelo meio do capinzal. Dada a baixa velocidade, rapidamente podiam saltar e evoluir em perseguição dos atacantes. À frente da coluna, dois rebenta minas abririam caminho aos que vinham atrás de si, os cavalos, acondicionados em transporte apropriado, seguiriam pelo meio da coluna até à zona onde fossem largados para prosseguir a operação.

Um esquadrão de cavalaria temível pelos estragos que fazia na perseguição dos insurrectos. A mobilidade ideal para aquele tipo de terreno, rápidos, altos para que de cima das suas selas nada passasse despercebido e depois era largá-los a toda a brida pela chana fora. Nem para disparar as espingardas automáticas se imobilizavam, o treino era feito exactamente para lhes dar esta mobilidade e esta destreza que aterrorizava os que eram apanhados de surpresa pela sua aparição. Seriam largados para além de Nerinha, sem sequer entrarem na vila, tinham como objectivo descerem pelo Norte, batendo toda a região, que fazia fronteira com a Zazânia, até atingirem Rivuri, nesta descida cortavam as rotas de fuga possíveis para a Zazânia.

De noroeste desceria um batalhão de caçadores, a partir de Nerinha, que se separariam abrindo em leque, mas mantendo a direcção noroeste até atingir a vila. Outro batalhão de caçadores, trazido especialmente para esta operação, evoluiria a partir de oeste, abrindo também em leque depois de entrar na zona de combate prevista, desceria mais para sul e inflectiria, cobrindo toda a zona oeste e sudoeste até à vila, para fechar a tenaz de sudoeste e de sul subiriam seis companhias de grupos especiais que se encarregariam da limpeza pela zona por onde passassem. Seriam heli-transportados até ao local destinado ao início da operação, bem dentro do coração da mata, quase no paralelo de Mekile, daí para a frente era operação pura e dura, a pé pelos caminhos da floresta. Não havia referência de acampamentos, mas havia rotas de infiltração que deviam ser destruídas, minadas e se possível com captura de homens e material. Mortes só se necessário.

Ao mesmo tempo, foram reforçadas, em número e homens, as lanchas patrulha que vigiavam o rio Kukudo, não deixavam que nada nem ninguém se atrevesse a atravessá-lo. Ficava, pois, isolada toda a área para Este das suas margens que seriam objecto da segunda ofensiva. Depois da reunião das tropas em Rivuri, já com a área anterior, por onde evoluíram, limpa do “IN”, sairiam em direcção à fronteira com uma formação em leque que abrangeria toda a zona formando a malha que terminaria com as incursões indesejadas.

A Noite Escura calhara um brinde. Era sempre assim, manifestava-se interiormente, o pior tinha que ser para nós. Uma imensa coluna de helicópteros iria largar as duas companhias de comandos, que se encarregariam da zona para lá do rio Kukudo, actuando em grupos de duas secções, dez homens formavam cada grupo. As quatro companhias de comandos, consideradas mais que suficientes para atingir os objectivos propostos, formariam uma barreira à retirada e fuga dos guerrilheiros e fariam a perseguição Zazânia dentro caso fosse necessário ou novas ordens chegassem nesse sentido. O equipamento era o do costume, nem mais nem menos, tinham de ser suficientemente flexíveis e rápidos para executar as suas missões e o excesso de peso só os prejudicaria, impedindo a sua progressão com a rapidez necessária. Calculados os dias de operação e preparadas as rações de combate, único alimento que lhes era permitido, ainda diminuíram a sua quantidade por motivo de racionalidade de transporte e peso das mesmas; preferiam ter mais peso em munições, granadas e material de guerra do que em alimentação.

Depois da finalização e chegada militar de todas as direcções seria a limpeza geral, quer dizer, era o arranque para a segunda fase da operação que se desenrolaria a partir de Rivuri até à fronteira da Zazânia, em leque, onde esperavam os comandos para o rebate final. O assalto aos acampamentos referenciados dentro, ainda, do território. Nada nem ninguém passaria por ali, o facto de serem estes homens especialíssimos na guerra de guerrilha, a serem a cobertura da fronteira tinha efectivamente a ver com o cortar das saídas por ela, mas também o sinal que não se ficaria por ali. Para dentro das fronteiras de Zazânia, só estes homens entravam.

Quase sem serem notados, sem darem por eles, fariam a limpeza total daquela área junto à linha divisória entre os dois países, iriam garantir o sossego futuro de quantos ali viviam e trabalhavam. Para além destes que se encontravam acoitados nas brumas da floresta junto à fronteira, aguardando a sua actuação e tendo sido heli-transportados para um local próximo de modo a estarem no terreno antes do início da operação e, também, para não darem nas vistas, de forma a não serem tomados como uma ameaça latente, ficaram de reserva em Megone mais uns quantos, para serem uma garantia de retaguarda preparada para se transformar em ataque imediato.

Ninguém deu por nada. No entanto, prevendo alguma dificuldade, no interior do palco da operação, havia mais duas companhias de comandos em estado de alerta total, equipados e com os meios de transporte necessários, helicópteros, também eles, preparados para, de imediato, serem largados no meio da zona de combate onde, realmente, era o melhor terreno da sua actuação, criariam o terror e a desorientação no “IN”.

A surpresa, a surpresa surgiria quando menos se esperava e quando nenhum dos intervenientes a aguardasse. Algo impensável, mas o ser humano é mesmo assim, imprevisível e, nas condições em que se actuava, debaixo de fogo, numa guerra destas, em que nunca se sabia de onde vinha a flagelação, os milagres também aconteciam.


22.02.18


 



 



 



 



Há muito que, pelas messes de oficiais se falava da necessidade de uma limpeza lá para os lados das chanas do Leste. Uma coisa que desse uma machadada na pretensão dos “turras”, ou de alguns deles já que eram vários os que reivindicavam o direito ao acesso ao poder no país. Mas tanto quanto se sabia ainda não havia nada de concreto.



Como sabemos, tudo o que se bichanava nas messes de oficiais não tardava a passar às casernas da soldadesca que, de imediato, a passava para o exterior, para a vida civil, pela promiscuidade existente entre uma população que não passava sem os convívios de café onde estas coisas se sabiam rapidamente. Ora sabendo-se aqui, não demorava até que o “IN” fosse devidamente avisado do que se passava e do que se pretendia fazer. Nesta perspectiva, ambos os lados se preparavam para o embate. Uns porque queriam resistir para não perder a posição adquirida no terreno que lhes dava um certo ascendente sobre as populações e mesmo sobre a tropa regular. Outros, porque queriam acabar com essa ascendência.



Limpar a zona, era, pois, uma premissa que estava no horizonte dos generais. Reduzir a actividade a algo incipiente, se bem que a resistência já era praticamente nula. Não fossem as malditas minas e tudo se resumiria a encontros ocasionais com bandoleiros armados. Estava-se assim, neste stato quo em que a vida decorria sem grandes anomalias que as já conhecidas. A uma emboscada aqui, respondia-se com uma perseguição até à fronteira que terminava, por norma, no cerco e ataque a algum acampamento que se tivesse instalado por ali.



O que se pretendia era algo de maior envergadura. Algo que levasse a segurança para muito além da mera fronteira política existente. Queria limpar-se a zona adjacente à fronteira e passar por ela até bem dentro do coração do outro país onde se acoitavam os ditos “turras”. Ora a envergadura e o sigilo que era necessário a uma operação desta natureza não se compadecia com o conhecimento público da operação que seria, sem dúvida, imediatamente, aproveitado como objecto de arremesso e descredibilização mundial do governo dominante.



Foi então, mantida em banho-maria, ou seja, desmentia-se publicamente, nada havia a preparar-se nesses termos, como corria pelo público, mas, no interior de um secretismo exacerbado, as coisas iam tomando forma. O grupo especial de estudo da ofensiva estava pronto e a trabalhar em toda a linha na preparação e selecção, quer da operação e logística consequente, como dos próprios grupos que nela iam intervir.



Nada seria feito como regularmente, com grande movimentação de tropas que de longe eram logo topados. Não, desta vez e para este tipo de operações a coisa seria muito mais cuidada. Desde logo, a intervenção seria efectuada somente por grupos de tropas especiais, tropas essas em que pontificavam os “recuperados”, que se tinham entregue e agora combatiam pelo governo dominante, e os tão temidos comandos, terror de todos quantos faziam da guerrilha a sua forma de combater aquilo que consideravam uma ocupação do seu país.



Branquelas tinha o seu grupo concentrado, se assim se pode dizer dada a vasta área de floresta por onde se espalhava, junto ao rio Kukudo. Uma zona que se assemelhava muito a um laço de uma corda. O rio fazia aí uma larga curva que permitia uma aproximação apropriada à vila de Rivuri. O objectivo era infligir o maior número de baixas ao exército dominante que aí tinha instalado um quartel militar, com uma força considerável, já que se encontrava numa linha da frente de combate e muito perto da fronteira com Zazânia.



Nesta zona, dentro de território Zazâniano, muitos grupos se encontravam acantonados ao longo da fronteira. Faziam incursões fora da sua zona de acolhimento e segurança na Zazânia a todos os que se aventuravam a circular na picada sem escolta militar. Para além disso gastavam o tempo na minagem dessa mesma picada. Sempre que havia rebentamentos de minas, por acção de passagem de viaturas ou patrulhas apeadas, voltavam à carga e repunham as minas de novo. O perigo era que, quando as tropas regulares por lá passavam, usavam-nos para caminhar na presunção de que se já tinham rebentado não haveria perigo. Engano, eram os mais perigosos, quando o descobriram era tarde, já muitos tinham sido estropiados e mortos pelo seu rebentamento.



Apesar de não terem capacidade para um ataque directo ao aquartelamento, acabavam por paralisar todo o movimento na zona. Um movimento que se fazia essencialmente por madeireiros em busca das matérias-primas que a floresta lhes fornecia. Não conseguiam chegar às explorações que detinham e de onde a retiravam ou, se o conseguiam fazer e na ida nada lhes sucedia, era certo e sabido que no regresso seriam apanhados na artimanha. Uma emboscada seguida de destruição e fuga para terreno seguro ou rebentamento de minas que danificavam as viaturas e inviabilizavam o negócio, para não falar também no número de vidas civis perdidas nesta picada.



Branquelas dispôs o seu contingente naquela área, cobrindo toda a curva do rio mas a suficiente e segura distância, para evitar o contacto directo e mesmo a sua detecção pelo exército. Era uma zona de floresta cerrada, não havia picadas ou trilhos que os humanos percorressem e como tal, sentia-se seguro para ordenar os ataques que iam fazendo a partir dali. Mantinham acesa a chama do descontentamento e a prova de que não conseguiam acabar com eles.



Estavam a planear um ataque em maior escala e com um número de combatentes superior. O plano consistia em concentrar os guerrilheiros dispersos pela área da curva do rio, exactamente em frente ao embarcadouro das lanchas patrulha do rio Kukudo. Estas seriam destruídas como primeiro sinal do ataque, mas, para que isto acontecesse, tinham, antes de atravessar o rio e de se posicionar ao longo da frente norte da vila para a varrerem a metralhadora e granadas, à medida que avançavam. Criavam, assim, o pânico necessário a que os restantes guerrilheiros, a força mais compacta e melhor preparada e municiada, em número considerável fariam ribombar a noite através de morteiros e lança-granadas, directamente sobre o aquartelamento que, neste momento, se confrontaria com a decisão da sua defesa ou da defesa da vila e dos civis aí residentes.



Tudo estava planeado, preparado e pronto a ser lançado, a data correcta do ataque foi marcada para um dos dias mais importantes do ano, pelo seu significado e porque nesse dia as forças residentes estariam mais dispersas e descontraídas. Seria na noite de 24 para 25 de Dezembro. Ficaria marcado no calendário da história como uma noite inesquecível e aterradora para o exército dominante, vitoriosa para os guerrilheiros, assim pensava Branquelas.



Dar-lhes-ia maior visibilidade, respeito e sobretudo uma vitória para aumentar a auto-estima que estava muito por baixo. Nos últimos meses, as deserções tinham sido imensas, provocadas pelo cansaço da guerra que durava há tempo demasiado e sem resultados para o seu lado. Por outro lado, a política da “psico” que tinha sido adoptada pelo exército ocupante estava a fazer mossa nos guerrilheiros. Ofereciam o perdão, integração nas forças regulares e ainda, para os que queriam regressar à vida civil, terras e apoio financeiro para construírem uma casa e tratarem da sua exploração agrícola.



O exército, por seu lado, garantia, com estas acções, um tampão às actividades dos contras na área onde esta gente se implantasse, era também um meio de menor preocupação defensiva da vila, por se encontrarem muito perto dela e serem os primeiros a dar sinal da presença de indesejáveis à paz vigente. Podiam assim dispor de mais forças para a perseguição e ataque aos acampamentos dos contras, dissimulados entre eles e a fronteira. Era menos uma área de desperdício de homens e material.



Para Branquelas, finalmente a coisa iria ser feita com cabeça, tronco e membros. Haviam recebido material mais recente, em qualidade e quantidade que lhes permitiria o lançamento de acções mais aguerridas, mais proveitosas e com uma cadência de acontecimentos maior. Tinham necessidade de dar uma nova vida ao movimento, para tal precisavam de acções espectaculares, para que a imprensa internacional se interessasse e pusesse nas bocas do mundo aquilo que ali se passava e o esforço que faziam para libertar a terra de invasores não desejáveis, o exército dominante.



O que Branquelas desconhecia era que, este esforço de modernização material que tinham recebido, não era mais que um último esforço no sentido de conseguir alguma vitória, algo palpável que mostrasse a sua presença forte no território. O movimento estava nos últimos sopros de vida, o apoio internacional tinha-se vindo a esbater por força da intervenção do exército dominante, pelas políticas seguidas pelo governo e pelo desenvolvimento ímpar que o território vinha a adquirir. Tinha, também, todo o interesse em que o mundo visse que afinal, os maus da fita não eram eles, mas os guerrilheiros que, matavam, estropiavam e roubavam tudo o que pela frente encontravam, sempre que tinham alguma possibilidade que, aliás, cada vez eram menores.



Tudo confluía para que este fosse um ataque que desse outro alento ao movimento, que atraísse novos apoios que tanta falta lhes faziam. A coisa ia ser decisiva, pensavam os mentores do movimento e assim pensava também Branquelas. Como em tudo na vida, o imponderável acontece. Não sabendo o que se passava do outro lado da barricada, embora as informações que sempre receberam fossem imensas e preciosas, a nível de movimentação do exército, das substituições, material usado e mesmo das rendições individuais, que se tornaram quase a norma no inimigo, e isto lhes tivesse permitido a sobrevivência até aí, estavam cada vez mais fracos e falhos de tudo.



Branquelas tinha o seu comando e responsabilidade aumentados para lidar com este afluxo de guerrilheiros de tudo quanto era lado e que ali vinham engrossar as forças atacantes e jogar a cartada que seria decisiva para se manterem e até reforçarem os apoios exteriores que estavam a perder. Sabia tudo isso e tudo arriscou para que a operação se transformasse no êxito que queriam que fosse. A população, um misto de gente com origem europeia e africana, que vivia na vila, não devia ser molestada se não pegassem em armas.



Era ponto assente, este era um movimento que não visava acabar com o branco nem com os africanos que com eles colaboravam, mas sim com a injustiça, senão, que estaria ele ali a fazer. Era um movimento que queria permitir que os filhos da terra a governassem ao invés de outros vindos não se sabe de onde, que na maior parte das vezes nem sabiam onde ficava África. As cartas estavam, portanto, lançadas, restava-lhes agora jogá-las suficientemente bem para não falharem a vitória final.



O eco distante da vitória de outro movimento, na Guiné, em Guijele, dava-lhes alento e incutia nos homens uma última réstia de coragem e valentia já muito arredias. A diferença entre eles e o que se passara em Guijele era abismal. A geografia do terreno era a parte que mais concorria para que de um lado as coisas corressem melhor do que do outro. A Guiné era um território encravado entre vários estados africanos e, nenhum deles amistoso, pelo contrário, em todos eles havia bases de guerrilheiros acantonados muito perto das fronteiras e prontos a entrar no território a todo o momento sem que o exército, mal equipado materialmente, pudesse fazer alguma coisa para além de umas acções isoladas e logo denunciadas na imprensa internacional.



Ali a coisa era diferente, se bem que perto da fronteira com a Zazânia, ainda era dentro do território, no teatro de operações em que o exército, mercê de uma atempada percepção dos acontecimentos, se tinha equipado de tropas especiais que tinham uma dinâmica muito própria e uma mobilidade extrema e isto fez toda a diferença. Antes mesmo de conseguirem estabelecer-se definitivamente em zona dita “libertada”, caíam-lhes em cima e destruíam tudo o que tentassem implantar no terreno, desde armamento pesado a aldeias guerrilheiras.



Estes homens, que a história liga aos mais capazes esforços de guerra, eram terrivelmente temidos pela sua ferocidade em combate, por efectuarem os ataques mais importantes e devastadores sem terem de se sujeitar às grandes logísticas que precediam os combates entre o exército e os guerrilheiros. Simplesmente, atacavam quando menos se esperava, depois de avançarem dias e dias sozinhos e silenciosamente pelo meio do matagal, em grupos reduzidos, mas de uma eficácia tremenda. Quase uns fantasmas, que se materializavam na altura precisa de provocar a devastação nas hostes adversárias.



Eram estes grupos de comandos que Branquelas temia, para ele não eram homens como os outros, mais audazes por se sentirem imbuídos de uma mística que lhes foi sendo incutida ao extremo, sentiam-se deuses no terreno da guerra. O pior, para os seus homens, era a aura que lhes antecipava a fama. As suas façanhas, nos terrenos mais difíceis e nas operações mais complicadas era uma coisa que corria de boca em boca e que, mesmo sem o quererem, os assustava desmesuradamente.



Só o destino sabia o que se iria passar, como evoluiriam os combates e qual o vencedor deste encontro de titãs. Mas o destino, esse imponderável e desconhecido elemento chave em todos os actos da vida, iria fazer das suas. A surpresa estava reservada para o meio de uma imensa chana onde finalmente as coisas se decidiriam.


 


21.02.18

 

Espigadotes, já mais saídos das asas das mães passavam os dias de escola a contar o tempo em falta para as férias grandes, e, nessa altura, eram mesmo grandes, três meses ninguém lhos tirava. Certo era que a praia estava fora de questão porque não era a altura, estava um tempo mais fresco, que frio, aquilo não se podia chamar. Dedicavam-se a outros afazeres tão ou mais prazeirosos que uma ida à praia, eram tantos que lhes ocupava o tempo de férias por inteiro.

Ainda a escola rolava e já se faziam os planos para depois dos exames, essas coisas aborrecidas que se faziam todos os anos da primeira à quarta classe e até se tinha de ir vestido com uma roupinha melhor, para impressionar os professores, diziam as mães, no tempo em que o respeito pelos professores, esses seres de conhecimento ilimitado, era coisa que não se punha em causa. Eram eles que moldavam o carácter destes meninos que um dia seriam homens, quantos moldaram.

Quando chegasse o tempo da liberdade total já alguns planos estavam bem desenhados para implementar. Desde logo precisavam de uns trocos para as brincadeiras, trotinetas e carrinhos de rolamento, que exigiam algum gasto em materiais. Portanto, quando o sr. Almeida não tinha os rolamentos necessários à sua fabricação, restos dos arranjos dos automóveis, era necessário comprar algum e lá estava a necessidade de uns trocos. Não era raro ver os tais veículos construídos por eles com rolamentos de diferentes origens, de tamanhos assimétricos, mas o que era isso se aquilo rolava? Pois, nada de importante.

Mas então onde se iam buscar os tais trocos? Semanadas era coisa que ninguém ainda tinha ouvido falar, pedir aos pais dinheiro para isto estava fora de questão e ainda se sujeitavam a ouvir, “vai mas é estudar que está quase a começar o ano” mesmo que fosse no primeiro dia de férias e ainda aí viessem mais três meses de liberdade. Nesses anos dourados de tanta brincadeira, arranjar dinheiro era coisa que se tornava difícil, mas foi aí que entrou, mais uma vez, a prodigiosa imaginação desta gente grande em ponto pequeno.

Vender fruta era uma hipótese. Apanhá-la das árvores e ir vender à porta dos vizinhos que, estou convencido, compravam mais para lhes dar o dinheiro que por necessidade de a comer. Neste ramo de actividade, cedo descobriram que as maçãs da Índia eram o produto mais rentável e mais procurado, espírito comercial, então era um corrupio aos quintais mais afastados para sacar as prodigiosas maçãs que juntavam em saquinhos separados, não por peso, mas pela quantidade, por cada dúzia pedia-se um valor e era um saquinho, dois saquinhos duplicavam a conta.

Claro que aos valores de hoje aquilo nada valia, mas ia dando para um rolamento ou outro, para uma “mission maçã”, uma novidade americanizada que apareceu na altura e era deliciosa quando fresquinha. Comprava-se na mercearia do sr. Baptista, isso mesmo com “p”, era assim que ele gostava, “Baptista”, fazia as delícias da meninada. Também ninguém duvida que os montantes arrecadados, com as vendas da fruta, não davam para mais do que uma e então era vê-los a contar os golos que cada um bebia no momento em que a garrafa ia dando a volta pelos três. Nunca apanharam nenhuma doença por beberem todos da mesma garrafa. Nunca a diferença de cores foi objecto de alguma repulsa ou contradição, eram só meninos, sem as manias dos adultos.

Outra hipótese que se punha como interessante, também, era a venda dos livrinhos de quadradinhos. Iam comprando ou pedindo aos pais que lhos comprassem durante o período das aulas, era uma forma de dar a volta ao texto, não lhes pediam dinheiro, mas pediam os livrinhos que depois de lidos relidos e lidos de novo, depois de passarem pelas mãos dos três em vagas sucessivas de “empresta-me esse que eu empresto-te este”, eram religiosamente guardados para a venda nos primeiros dias de férias.

Assim nasceu o negócio das rifas que era muito mais fácil. Estendia-se uma tábua no exterior do quintal, junto ao muro, espalhavam-se os livros, arrumadinhos lado a lado, com as capas à mostra. Tarzan, Mandrake, Fantasma, Super-Homem, Zorro e seu amigo Tonto, Pato Donald, Gastão, Gasparzinho o fantasma, Ivanhoe, Conde de Monte Cristo, os três Mosqueteiros, major Alvega, enfim, um sem número de leituras obrigatórias para a idade. Os preços das rifas iam variando de acordo com o interesse demonstrado pelos clientes e eram logo assegurados na altura em que se verificava que ele gostava mais de um ou de outro, tendo por base um mínimo abaixo do qual não desciam.

Major Alvega. Esse mítico herói de aventuras mil que lhes povoava a imaginação, este era dos mais procurados, como tal o seu preço chegava a ser proibitivo para o pessoal da mesma idade, mas ia-se vendendo. As rifas tinham preços por quantidade, duas rifas quatro rifas, oito rifas, a partir daí era o que se quisesse. Comércio livre, sem impostos e sujeito a ser corrido da rua se passava algum polícia mais aborrecido.

Já o Fantasma, para leitores mais interessados, uma vez que as suas estórias se passavam num espaço indeterminado em África, gente que procurava o seu estilo musculado e misterioso por trás de uma máscara que se lhe apegava ao rosto, a pistola descaída sobre a anca e o seu alazão branco, sempre na defesa dos mais desprotegidos, era um verdadeiro herói.

Conseguiam pois amealhar uns tostões que eram, em regra, guardados por Noite Escura, funcionava assim como o tesoureiro do grupo. Confiavam nele até a dormir, sabiam que dinheiro que ele guardasse jamais seria desperdiçado em alguma coisa diferente do combinado. O cofre era forte, uma velha caixa de charutos que alguém desperdiçara e eles logo recuperaram para o efeito. Sem cadeado, sem nada que garantisse a sua segurança, a não ser, aquela cega confiança que tinham uns nos outros. Bons tempos.

Captados os fundos, havia de se proceder à procura e recolha das madeiras necessárias à construção dos ditos veículos. Das mais variadas origens e pertencendo a diversos fins já inertes. Chegavam a ter aduelas de barris velhos, muito procuradas para os eixos frontais dos carrinhos de rolamentos e para as colunas do volante das trotinetas dada a sua curvatura, eram as ideais e as mais difíceis de arranjar. Para o resto dos bólides qualquer madeira servia, desde que tivesse as dimensões necessárias. Pregos? Já que tudo isto era feito com os mesmos, não havia problema, eram recuperados das madeiras que encontravam ou retirados de outras sem que a sua validade ou robustez fosse posta em causa.

Hoje, perguntar-se-ia, então e a segurança, e se caem e se magoam, se partem a cabeça? Nada disto os preocupava pela sua inabalável fé na perícia dos condutores e na capacidade de se desviarem dos obstáculos que lhes aparecessem pela frente. Por vezes falhavam e lá iam com mais uma mossa na carroçaria até casa para se tratarem com a célebre tintura de iodo, tratava tudo e funcionava às mil maravilhas. Era sempre um prazer retomar as correrias depois de devidamente pintados, nas pernas, nos braços ou onde fosse com aquela cor amarelo acastanhada da tintura de iodo. Um troféu, representava a coragem do condutor do veículo face a todos os que se acanhavam com os avisos de casa de que tivessem cuidado, que era perigoso, essas coisas que sabemos que as mães fazem sempre.

Acabado o dia, cansados, esfomeados e sujos como tudo, lá iam guardar os objectos do seu agrado, os brinquedos que faziam para brincar e inventar a brincadeira. Antes do banho obrigatório para o jantar, lá cortavam um pouco o calor e suor que traziam passando pela mangueira do quintal que sabia tão bem como qualquer piscina ou mesmo uma praia. Depois, directos para a banheira, a que se seguiria o jantar, quando os pais chegassem e a mãe tivesse a manja pronta.

Que ricos dias se passavam naquela agitação das férias. De quando em vez, lá se juntavam as respectivas mães e iam em romaria para o parque Heróis de Chaves, era uma caminhada, mas sempre na galhofa. Saíam da rua com o farnel para o lanche numa cesta de vime e dirigiam-se às traseiras do cinema Restauração, onde se situava o dito parque, um par de patins, nada de coisas complicadas, eram de metal e acoplavam-se às sandálias, era um gozo. De vez em quando queda pela certa que aquilo resvalava para os lados e o pé ficava todo torcido, mas, reparada a ineficiência, partiam de novo para a correria de patinagem. A bola era outra diversão interessante para o local, em alguns espaços mais amplos era-lhes permitido dar uns chutos, sem incomodar ninguém já se vê, ou teriam de se haver com as mães ali por perto.

As correrias entre as plantas, os primeiros encontros com as meninas da mesma idade e que já começavam a despertar a cobiça dos seus olhos, tudo isto os maravilhava, nunca reclamavam, também, para quê? De que adiantava? O mais certo é que perante reclamações, deixassem de lá ir. Valia mais gozar o momento e estar calado que no fim, na hora do regresso, haveria de certeza um “baleizão”, gelado como então lhe chamavam em homenagem à célebre esplanada onde tinham sido “quase inventados”. Comiam todos, os filhos e as mães que também gostavam. Ai de quem o deixasse cair, ficava a lamber-se vendo os outros comer pois só havia uma oportunidade.

Sempre lhes fez confusão aquela coisa do homem do “baleizão” retirar a tampa, por cima do carrinho, pegar numa espécie de colher, uma espátula, e num cone e enchê-lo daquela coisa deliciosa que vinha lá de dentro. Vários sabores à escolha, mas sempre, subjacente, o sabor do leite, que, não se afastava deles, qualquer que tivesse sido a escolha feita. Que importava isso, o que verdadeiramente importava era o imenso prazer que retiravam das lambidelas à volta do cone que o suportava.

O que custava mais era o regresso a casa, ir a pé para a festa até era agradável, mas o regresso ao fim do dia era terrível. Doíam as pernas, estavam cansados, quezilentos, chatos mesmo. Nada que um puxão de orelhas aqui e ali não resolvesse de imediato. Mais um dia de férias, pensavam, estavam a passar muito depressa, não teriam tempo para todas as brincadeiras planeadas. Ainda não tinham sequer ido aos passarinhos e férias que eram férias, tinham de proporcionar uma caçada aos felizes chilreadores. Outro dia virá e iam em frente, guardavam um dia inteirinho para isso, com umas subidas às mangueiras e gajajeiras da zona para se alimentarem.

O ritual do costume, com os banhos diários muitas vezes se questionava se isso não os iria afectar em termos de pele. Achavam que tanto esfreganço ainda lhes ia arrancá-la, mas, não tinham nada a fazer senão obedecer e calar ou vinha galheta pela certa. Os sacrifícios que tinham de fazer só para se divertirem. E as trotinetas estariam em segurança? Era melhor confirmar. Estas coisas pareciam dar a todos ao mesmo tempo. Lanterna na mão direitos à janela do quarto e confirmar com os restantes companheiros da vida airada que nada de anormal se passava. Acende aqui. Responde dali e dali. O dia estava feito, os veículos em segurança, toca a dormir para acordar cedo que amanhã é dia de caça.


20.02.18

 

 

No meio de tudo isto surgem três novos habitantes por quem ainda não se tinha dado conta. Franzinos, paus de virar espeto, vivaços, sempre juntos, sempre alerta e prontos para tudo. A explicação para não os conhecerem era simples, só agora saíam de debaixo da asa protectora das mães.

Até aí, era quintal, escola, escola, quintal e com alguma sorte, de vez em quando, para não abusarem, conseguiam juntar-se os três no quintal de um ou de outro para as brincadeiras infantis, sempre sob o olhar atento das respectivas mães que os entregavam e iam buscar quando achavam que já era suficiente.

A escola primária foi feita em conjunto e era vê-los sentados nas carteiras mais atrás, onde, quando a professora não via, se dispunham à galhofa natural daquelas idades. Da escola iam directos para casa e, sem nenhuma combinação especial, as mães revezavam-se na sua recolha. Um dia uma, outro dia outra e quando recolhiam o seu rebento lá vinham mais dois à pendura.

À primeira vista era tudo normal, o que destoava era a composição do grupo, que acabou até por ser conhecido como “os três da vida airada”. O Branquelas, por muito que fosse à praia não havia meio de se queimar, o Noite Escura, que bem se podia tapar que não esbranquiçava, e o Meia de leite, que equilibrava as cores. Não havia entre eles qualquer resquício de animosidade pela diferença de cores, pelo contrário completavam-se e na sua qualidade de crianças inocentes até se achavam um arco-íris.

Nunca esta diferença impediu que se cruzassem em casa uns dos outros ou que passassem as noites na casa de um ou de outro, eram sensivelmente da mesma idade, algumas semanas de diferença num caso um mês noutro por isso mesmo, a união dos três foi-se fortificando à medida que cresciam. Enquanto jovens os pais não tinham preocupações por aí além, sabiam que se não estivessem em casa estavam na de um dos outros. Tudo controlado.

Foram crescendo nesta espécie de liberdade controlada que se tornou mais permissiva à medida que o tempo ia passando e que eles também a adquiriam por via da responsabilidade que lhes ia sendo atribuída. Até ao fim do exame de acesso à fase seguinte dos estudos, a entrada para o liceu, escola industrial, escola comercial nunca se separaram, o exame não pôde ser feito em linha, pois a chamada era por ordem alfabética e isso dividiu-os nos lugares a ocupar na sala.

Depois tiveram que escolher entre as três escolas qual a que queriam seguir. Foi a separação, aos dez anos de idade, pela primeira vez separaram-se. Separaram-se em escola não como amigos chegados, porque isso, nada nem ninguém conseguiria fazer. O Branquelas e o Noite Escura seguiram a via de Escola Industrial, já o Meia de Leite entrou para o liceu. Seguiram mais ou menos a par até aos anos do sacrifício, dezoito anos, idade difícil, naquela altura ainda mais.

Tiveram de “dar o nome”, o que significava que a partir daí tudo lhes era negado. Estavam em vias de ser incorporados nas forças armadas, o que acontecia por volta dos vinte anos de idade, apesar de ser um desígnio nacional, uma obrigação, a verdade é que já nessa altura os grandes empresários do país demonstravam o seu apego ao lucro e ao dinheiro, não se importando com o país ou os seus iguais, desde que isso não lhes rendesse o suficiente, como tal, não empregavam ninguém até estar definitivamente livre desse inferno na terra.

Foi aqui a segunda e maior separação entre os três. Sem sequer ir “dar o nome”, Meia de Leite deixou de ser visto pela redondeza, mais tarde se soube que foi a salto, “bazou”, pôs-se a andar antes de ser recrutado. O Branquelas não se fez rogado, depois de receber a ordem de recrutamento, em vez de se dirigir ao local de recepção no exército, viajou clandestinamente até ao norte do país, passou a fronteira e deteve-se onde o receberam com agrado. O Noite Escura, seguiu a via tradicional, foi recrutado e incorporado no exército que mantinha uma guerra de guerrilha que devia ter terminado há muito.

A partir dessa altura deixaram de ter o contacto habitual e diário uns com os outros, mas as famílias mantiveram-se unidas e da sua amizade saía sempre a preocupação com os filhos de umas e de outras. Acabaram por ter notícias do Meia de Leite. Conseguira chegar à Bélgica onde pedira asilo político. Por lá ficaria e jamais regressaria definitivamente à terra que o viu nascer, aos amigos de infância, à vida que conhecera.

As famílias continuavam a reunir-se, nos quintais, ao sábado, faziam as suas patuscadas e nada prometia uma diferença entre elas por causa da opção dos filhos, pelo contrário todos estavam preocupados com uns e outros. Talvez se notasse da parte dos pais de Branquelas algum desconforto em falar do filho e até, em determinadas alturas, o evitavam. Afinal o filho tinha-se passado para o “IN”, mas até isto era relativo entre eles. Afinal quem era o “IN” os que estavam no poder ou os que estavam no contra? Qual deles defendia melhor o futuro daquela terra? Da terra deles, da terra onde viviam e eram felizes?

Questões como esta punham-se com frequência e ali, entre amigos, que noutros lados era impossível e perigoso, falava-se abertamente e se os pais do Noite Escura se recatavam mais, já os outros eram abertamente a favor de que aquela guerra já durara de mais. O melhor mesmo era terminarem as hostilidades, dar autonomia com vista a uma futura liberdade total a uma independência que desse ao país o seu verdadeiro realce. Assim, continuava a ser uma simples colónia que nada podia decidir quanto ao seu futuro e continuava a ver escoar para a mãe colonizadora todas as riquezas que possuía.

Por outro lado, sentiam-no, o desenvolvimento era grande, mas controlado e chegou um pouco tarde, deviam fazer-se coisas como se estavam a fazer, mas deviam ter começado mais cedo, muito mais cedo. As pessoas deixaram-se adormecer à sombra da bananeira e não remaram todos para o mesmo lado e, isto, era uma fonte de clivagem entre todos os que viviam na terra. Ali, no bairro, até parecia que se vivia num oásis, mas lá fora, nos musseques o descontentamento fervilhava.

No entanto, a vida continuava, a guerra estava cada vez mais longe, os seus ecos há muito que não se ouviam na cidade grande, mesmo nas mais interiores, só esporadicamente se tinha notícia de alguma escaramuça. Não significava isto a pacificação, mas sim um adormecimento. Mais tarde ou mais cedo haveria de novo problemas, diziam, as pessoas, que já não são os ditos terroristas, como se afirmava à boca cheia pela propaganda do governo, também se queriam afastar da situação de colónia, queriam crescer como país, livre de decidir o seu destino.

Olhavam para outro irmão grande, o Brasil, desejavam o mesmo destino e para isso era preciso que as novas gerações soubessem lutar por ele, sem sangue, mas com a firmeza da certeza do que queriam, afinal, todos o queriam, mas o medo da perseguição política era enorme. O que se poderia fazer desta terra com a sua riqueza natural, com as possibilidades de desenvolvimento interno, inimaginável. Seria o maior país de África, o mais desenvolvido, o mais rico. Tudo isto se dizia livremente entre eles, sem receios, a confiança era total entre aquelas famílias.

Todos tinham a noção das dificuldades que se enfrentaria numa situação destas, criar um país do zero era muito difícil, numa coisa estavam todos de acordo a questão dos musseques tinha que ser resolvida. Não era admissível que um país tão rico não desse condições aos seus cidadãos para terem uma vida mais consentânea com os seres humanos que eram. Também sabiam que só seria possível por um governo local e não dependente da potência colonizadora, só eles o conseguiriam fazer e era o que fariam pensavam todos.

De todos “os três da vida airada”, só Meia de Leite estava em segurança, na Europa, num país que atravessara uma crise em África muitos anos antes e que, agora, lhe dera abrigo, trabalho e até uma vida nova. Ainda que não o demonstrasse, Meia de Leite estava preocupado com os seus amigos nunca os esquecia e, sempre que possível, procurava saber algo sobre eles.

Branquelas, no seu périplo nacionalista, tinha sido destacado para uma zona desconhecida, para o leste do país. Aqui se debatia com toda a espécie de necessidades, alimentação, material, alojamento, enfim, tudo o que um guerrilheiro passava de necessidades por não fazer parte de um exército regular. As chanas do Leste eram a sua companhia, no meio daquele capinzal imenso tentava passar despercebido com o seu grupo, mas, tinham sobre eles, sempre, um perigo eminente a que dificilmente conseguiam escapar e como tal encontravam-se limitados nas suas acções.

Nunca percebeu muito bem onde é que o exército tinha ido buscar aquela ideia de ter no terreno, especialmente naquelas forças de cavalaria, a cavalo, com espanto, sempre achou uma ideia brilhante, pois a sua mobilidade era arrasadora naquele terreno e tinham mais, de cima dos cavalos tinham uma visão que quem andava no capinzal não conseguia obter. Ainda por cima eram de tal modo eficientes que disparavam a galope e ao mesmo tempo que abriam fogo sobre eles, cercavam-nos e facilmente os capturavam. Por tudo isto, todo o cuidado era pouco.

O destino às vezes prega-as e neste caso conseguiu juntar os dois amigos de infância, cada um do seu lado da barricada, ambos no mesmo teatro de operações. Noite Escura foi parar àquela zona, não como regular estacionamento da sua unidade, mas para operações especiais, ditas de limpeza, já que a sua era uma especialidade de alto combate. Só apareciam nas zonas para operações específicas e depois partiam para outra. Noite Escura era tropa especial, comando, gente preparada para, com poucos homens, produzirem resultados extraordinários.

Nenhum deles imaginava a partida que o destino estava prestes a pregar-lhes pois nenhum deles sabia que o outro andava por ali. Perfeitamente desconhecidos numa guerra de irmãos.

Dos três mafarricos de outrora, só um estava seguro, os outros dois teriam uma experiência que iria demonstrar o que a vida lhes ensinara em matéria de amizade.


18.02.18

 

 

Pena que não tivesse sido maior o fim-de-semana, daria certamente para alargar muito mais a visita, mas não foi. Mesmo à justa para uma escapadinha entre um sábado solarengo e um domingo ainda melhor.

 

Já o sol ia alto quando nos dirigimos àquela terra, pequena, uma vila ainda, mas charmosa, casas baixas e mesmo as mais altas não tão altas que incomodassem a penetração do sol, muito limpa, não me lembra de ver lixo pelo chão ou espalhado pelos passeios. Não muito longe de Lisboa e bem sinalizada, até para alguém como eu, que se perde até com GPS, placas de indicação por todos os lados, mesmo assim, a célebre dupla voltinha nas rotundas manteve-se, só para ter a certeza de qual a melhor direcção a tomar.

 

Lá chegámos, instalação no hotel de charme, como agora se chamam estas pequenas e acolhedoras unidades, em que nada falta e quase nos sentimos em casa, tal a atmosfera que os rodeia e como sempre o SPA, lindíssimo, muito bem desenhado e apetecível, mas desta vez não dava que o tempo era pouco. Desta pequena maravilha de hotel falarei noutro texto.

 

Saída para visita à vila e à famosa casa estúdio do não menos famoso e conhecido, internacionalmente, fotógrafo amador, como se denominava a si próprio, Carlos Relvas, espantoso.

 

Chocámos de frente com o sol quente e apetecível de que viríamos a pagar o atrevimento do aquecimento, tão logo se pusesse o sol, pois a noite esfriou quanto bastou. Uma pequena caminhada e hei-nos defronte a uma belíssima moradia construída com o único fim de ser um estúdio de fotografia, um autêntico hino a uma arquitectura extraordinária de tão bela.

 

Desde logo notei que a simetria da construção era espantosa, vista de frente, era igual para ambos os lados, uma simetria plena. Ladeada por duas escadarias e uma porta central no andar térreo que nos permitia o acesso aos tesouros guardados no seu interior, e eram tantos.

 

Construída sobre uma base de alvenaria e encimada por amplo salão envidraçado permitindo a utilização plena da luz solar, doseada magistralmente por uma série de cortinas do tipo “japonesa” que eram abertas e fechadas por uma miríade de cabos assim filtrando mais luz ou deixando-a entrar em quantidade suficiente para as belas imagens que dali sairiam.

 

Era exactamente construída para o fim a que se destinava e rodeada por um belo jardim, pleno de flores e árvores, onde não faltava até um pequeno lago onde, porventura, haveria patos e outras espécies paradisíacos.

 

Por dentro, espectacular, desde a belíssima biblioteca do seu proprietário, que se compunha dos grandes títulos da época, até aos imensos livros sobre o tema da própria casa, a fotografia, quadros, mobiliário e as imperdíveis fotografias impressionadas, ainda, em vidro, imaginem.

 

Não deixo de pensar o que seria, naquela época, ter uma maquininha destas actuais e digitais, ao invés dos pesados caixotes com que se exercia a arte, era a loucura certamente. Ainda por cima para quem a fotografia não era sequer para ganhar dinheiro, mas simplesmente para ter o prazer de criar belas imagens e fotografar quem o quisesse ser, sem custos para o fotografado.

 

Casa restaurada segundo a traça original e mantendo a beleza de quem a imaginou e construiu, em dois pisos. As paredes trabalhadas e deixando antever no exterior várias imagens de anjos que possuíam uma característica comum, o facto de nas suas mãos se encontrarem as célebres máquinas, os caixotes, fotográficas da época.

 

Mereceu a visita, a arte merece-a sempre. Recomendo vivamente aos amantes da fotografia e aos outros também.

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