21.12.13
Primeiro estranhou. A chuva não era assim tão intensa, podia mesmo dizer-se que era uma chuva mansa, calma, sossegada e própria para os dias como este. Depois, apesar desta chuvinha, do canto onde se abrigava conseguiu distinguir uma estrela a despontar no céu azul negro que vislumbrava para lá dos pingos de chuva.
Pensou que, eventualmente, a chuva só estava a cair para limpar os céus da poluição acumulada e permitir-lhe neste dia, em que a solidão mais se fazia sentir, ver a abóbada celeste, não em todo o seu esplendor, mas no possível já que visto de uma cidade cuja feérica iluminação, para as comemorações da época, pouco deixavam à vista para apreciar a criação do universo, mas assim, sentir-se-ia mais acompanhado.
Num relance de vista, entre a queda das gotas de chuva e uma abertura no céu, distinguiu claramente a via láctea. Engraçado, não se lembrava de alguma vez a ter conseguido ver nesta cidade. Mas lá estava ela, bela, resplandecente e cheiinha de estrelas, pequeninas, maiores, planetinhas minúsculos, à vista desarmada, que no seu conjunto permitiam um espectáculo único e imperdível, a via láctea, quem diria.
Com estas apreciações e circunspecções à roda destas pequenas maravilhas, mal tinha dado pelo terminar da chuva. Levantou-se, aproximou-se mais do passeio e experimentou a sensação do ar fresco acabadinho de ser molhado pela chuva.
Continuou a apreciar o céu e a via láctea que a achou mais bela do que quando a viu a primeira vez numa quinta de um parente, há muito desaparecido, para o interior do país e nas planícies do Alentejo.
Perdido na sua contemplação foi andando rua acima de cabeça no ar sem querer perder nada deste encanto de ser iluminado pelas estrelas e ter a via láctea como auto-estrada. De tempos a tempos uma estrela cadente passava rapidamente, cruzando o céu e correndo como que paralela à via que ele seguia com o olhar e agora também no caminhar.
Estranhou que todas estas forças se tivessem juntado para lhe prestar esta homenagem numa noite tão fria mas também tão festiva, era Natal. O seu não seria diferente de tantos outros ou mesmo dos outros dias, mas era um dia especial, um dia em que tudo poderia acontecer, e aconteceu.
Aconteceu que na sua contemplação lhe pareceu ver uma descida da via láctea no preciso local onde as estrelas também pareciam cair. Quase diria que se juntavam num só ponto de onde, aliás, irradiava uma luz muito mais brilhante que a de qualquer estrelas.
Quis averiguar, saber o que era, o que acontecia naquele preciso ponto e ao caminhar olhando o céu e o ponto luminoso distante, que sentia cada vez mais perto, não e deu conta que já não caminhava sozinho, atrás de si já havia uma pequena multidão de caminhantes, todos olhando o céu e as estrelas, todos dirigindo-se ao ponto luminoso.
Finalmente deparou-se com o local exacto onde lhe pareciam cair as estrelas e a própria via láctea. Por momentos hesitou, não lhe parecia nada de anormal, nada fora do comum, nada que não estivesse habituado a ver. Um armazém, era o seu aspecto, nada mais que um armazém, embora com alguma diferença dos que conhecia no dia a dia da sua vida de caminhante da rua.
Este estava iluminado, cheio de gente a entrar pela porta, na qual, algumas pessoas convidavam outros a entrar. Aproximou-se mais, mais e mais e pode apreciar a azáfama que se vivia no seu interior. Mesas postas, enormes mesas, compridas, onde pessoas sentadas aguardavam uma refeição que outra quantidade de gente se afadigava em servir.
Uma refeição quente, pensou, que bem lhe saberia.
E entrou, sentou-se onde lhe indicaram, serviram-lhe a refeição quentinha e fumegante.
Afinal, pensou com os seus botões, a via láctea apareceu-lhe com o propósito de lhe proporcionar uma noite diferente, uma noite melhor e acompanhado pela quantidade de conhecidos, desconhecidos que se sentavam à volta da imensa mesa. A sua mesa de Natal.
Naquele ponto, como outrora a estrela indicara o nascimento do menino, juntaram-se as estrelas para indicar que o menino estava ali também, metamorfoseado de tanta gente boa que lhe seguia os passos na ajuda aos seus semelhantes.
Foi uma noite diferente. Foi uma noite que perdurou pelos anos seguintes e em que, cada uma das noites que se lhe seguiu, permitiu ver a via láctea a indicar-nos um caminho, qualquer que ele seja, um caminho de encontro ao nosso semelhante.