Logo à chegada, no meio daquela imensa confusão em que se encontravam os que vinham de todas as partes do império moribundo, recusaram-se firmemente a ser separados.
Atravessaram um mar de gente deitada pelos cantos do aeroporto, embrulhadas em cobertores, em casacões que nunca usaram na vida, fruto de ofertas de quem os recebia. Crianças, espalhadas por entre os adultos caras espantadas, ainda sem reconhecerem a tragédia, na sua inocência, ainda brincavam umas com as outras. Os adultos, em cujas faces se marcaram as angústias e o terror do que lhes estava a acontecer, não exprimiam qualquer clamor, um rancor, nada que lhes aliviasse a dor de tal tragédia, estavam para ali amontoados, à espera. À espera de que alguma coisa acontecesse, à espera que isto não fosse mais que um pesadelo que, ao acordarem, logo desapareceria. Mas não era, nem os mais optimistas, que os havia, pensando sempre no retorno ao país de onde os trouxeram, já acreditavam nessa possibilidade. Estavam para ali à espera que algo acontecesse.
Filas enormes de gente que, parecia irreal, ordeiramente aguardavam que lhes dessem um destino, um porto de abrigo, um local para viverem e um molhinho de notas para sobreviverem ao primeiro impacto, dez mil escudos, este era o preço de uma vida, era o que custava uma vida destruída, um sonho desfeito. Também eles, três famílias amigas, desde sempre, ali se postaram. Lentamente a fila foi andando até chegar a eles. Depositaram-lhes o molhinho de notas nas mãos, destinaram-lhes um hotel para cada uma delas, a expensas do Estado que muito dinheiro recebeu de países amigos para os ajudar, até que organizassem a sua vida, mas recusaram. Recusaram-se a ser separados, recusaram que uma vida quase comum, fosse desta forma, abrupta e brutalmente separada pela burocracia que lhes estava à frente, impedindo-os de continuar unidos. Reclamaram, regatearam e finalmente conseguiram o seu objectivo, ficaram todos no mesmo hotel.
Lá se instalaram num pequeno hotel da cidade, bem no centro, que isto andava tão às moscas que até vinha por bem esta enchente dos hotéis pagas pela instituição criada para gerir todo este imbróglio. Não se quedaram por muito tempo, gente houve que ali viveu por muito tempo, até conseguir arranjar meios de subsistência que lhes permitisse largá-los, mas eles dispuseram-se a organizar a sua vida rapidamente, não queriam ficar a dever favores, muito menos a quem os colocara naquela situação. Como servidores do Estado foi-lhes, talvez, mais fácil, nem esperaram e assim que viram a abertura para tal logo se candidataram a ser reformados e conseguiram. Com esse estatuto e mais algumas poupanças que traziam, trocadas nas ruas da cidade de onde provinham, logo magicaram a melhor forma de, ajudando-se uns aos outros, conseguirem fugir desta ameaça à sua integridade psicológica.
Estudaram o país, estava um caos, quem podia, também daqui queria sair vendendo ao desbarato os seus bens e nesta situação, procurando bem, até podiam encontrar uma pechincha para adquirirem e largarem de vez este hotel que se ia tornando uma ruína com o excesso de gente e a falta de manutenção. Começaram por escolher o local mais adequado, e olharam para sul, mesmo no fim do país, juntinho ou o mais perto possível da sua terra, perto de África. Optaram por procurar aí alguma coisa que os satisfizesse, encontraram várias, escolheram a melhor, não junto às praias onde todos procuravam lugar, mas mais para o interior numa serra ainda pouco povoada onde as quintas, quase ao abandono se ofereciam a preços relativamente baixos. Aí fixaram a atenção, aí procuraram, e finalmente encontraram o ideal para eles, que não nadavam em dinheiro, mas que conseguiriam superar essa aflitiva situação em conjunto, sabiam que se não se unissem nunca o conseguiriam, a união faz a força, diziam e assim a praticaram.
Estabeleceram-se numa zona de montanha, sossegada e longe das multidões, sempre gostaram da calma e do sossego dos seus quintais, agora não tinham quintal mas tinham uma boa porção de terreno à volta das casas para utilizarem como lhes aprouvesse. Daí a porem a cabeça a funcionar no sentido de tirarem da terra o melhor que esta lhes pudesse dar foi um saltinho e era vê-los a fazer planos, plantar umas árvores de fruto tradicionais da região e também, porque não, já que o clima era ameno, tentar umas das que tinham deixado na terra que amavam. Foram surgindo, os abacateiros, as mangueiras, as bananeiras, uns pés de abacaxi e muitos outros, misturados com as frutas da região que já ali existiam ou que foram renovando, iam-se aprumando embora com o tempo mais frio se aquietassem no seu crescimento mas, assim que caíam os primeiros raios de sol de verão, cresciam a olhos vistos. Asseguravam assim, pela fruta e pela horta que os ocupava, algum do sustento alimentar de que careciam e os almoços de sábado, se sofreram alguma interrupção, logo se renovaram, com a facilidade de estarem muito próximos uns dos outros, afinal nem tudo fora tão mau, o pior eram as saudades da terra e dos filhos que por lá ficaram.
Este paraíso foi conseguido com a aquisição de uma quinta, suficientemente grande para ser dividida entre as três famílias. Juntaram todo o dinheiro que tinham e, ao comprá-la, já tinham destinado o que lhe fariam, a divisão pelos três e cada um com o seu pedaço de terra e uma casinha do campo, que iam melhorando na medida das suas possibilidades, lá se iam aguentando e tentando agarrar de novo a felicidade perdida. O primeiro Natal, dia do ano em que sempre se reuniram em casa de um ou de outro, que a coisa ia rodando para não ser sempre na mesma, retomou-se aqui, sem os filhos que não podiam estar presentes, o país estava em guerra acelerada, muito maior que a que tinham conhecido, nesta nada se poupava, nem havia misericórdia para os vencidos, trucidavam-se uns aos outros sem dó nem piedade, uma miséria. Só restava Meia de Leite que, estando na Europa, podia mais facilmente ir até eles, afinal era o seu primeiro Natal nesta parte do mundo e era altura também de conhecerem o neto que já espigava, mais a barriga de onde despontava, já sabiam, uma futura neta.
Dos seus quintais, na serra, perto do mar, pequenas quintinhas de onde agora extraíam enorme quantidade de alimentos frescos e saudáveis, que estavam habituados a obter da terra o que esta lhes dava sem necessidade de a forçar a produzir mais que o necessário. Chegava para eles e até distribuíam pela vizinhança, estavam finalmente a encarreirar as suas vidas depois da hecatombe, reformados, sem grandes necessidades que o carinho dos seus e dos amigos iam moldando a nova realidade à que traziam no peito. Pitangas, tinham de arranjar umas sementes para ver se conseguiam fazê-las crescer, adoravam aqueles pequeninos frutos amarelo-avermelhados, com um sabor entre o amargo, da sua acidez e o doce se estivessem madurinhas. Quando Branquelas e Noite Escura pudessem vir ter com eles trariam uns frutos de que retirariam as sementes para tentar a sua produção. De resto, quase todos os que conseguiram semear se reproduziram e melhor ou pior iam dando alguma coisa.
Foi uma festa, quinze dias de festa naqueles cercados do meio da serra. Meia de Leite chegou com Jeanne e José, Marie, nome da mãe de Jeanne, vinha aconchegada na barriga de sua mãe, já suficientemente crescida para se notar a proeminência. Todos festejaram a chegada, sem excepção, todos se congratularam pelo seu ar, pela sua família e pela sua presença no primeiro Natal que passavam nestas terras. D. Francisca e o sr. José, choravam a chegada do filho que não viam desde o funesto dia do seu desaparecimento, ou antes, o dia da sua fuga. Abraços, beijos, apertos, tudo servia para expressar a sua satisfação e a lagrimazinha sempre presente. Os amigos, pais de Noite Escura e de Branquelas, associaram-se mais comedidos, olhando para Meia de Leite não deixavam de se lembrar dos filhos, lá longe, em guerra por uma terra que nem sabiam como ia ficar ou quando iria acabar aquela maldita guerra.
José, pequenino ainda, corria pelo campo, perseguia as galinhas, fugia dos patos e corria, solto pela natureza sob os olhares atentos dos avós agora entusiasmados com o neto presente e a futura neta já a caminho. Agradeciam a Deus que no meio de tanta desgraça se tivessem salvo incólumes embora ainda preocupados com os outros dois que lá ficaram, um por opção, Branquelas, e o outro forçado, Noite Escura. Ainda haviam de se voltar a juntar todos de novo, mas todos mesmo, assim pensavam e rezavam para que acontecesse, custava-lhes ver os amigos naquela eterna preocupação por não terem os filhos por perto, mas Deus é grande, há-de trazê-los para junto de nós sãos e salvos, que é como os queremos. A festa foi preparada, a noite santa seria vivida por todos e com todos juntos, como sempre.
À mesa a conversa foi alegre, o jantar tradicional e, quando chegaram à fruta, aí é que todos se orgulharam de apresentar na fruteira a melhor de todas, aquela que eles próprios produziram, frutos da época, frutos do país e também outras iguarias, directamente das estufas que mantinham, bananas, abacaxi e mangas. Uma verdadeira mistura de Europa e África numa só mesa. Mas isto dá-se por aqui? Claro que sim, no inverno é mais difícil, mas como temos umas plantas nas estufas, tudo se dá, só nos faltam as pitangas, esperamos que quando os teus amigos cá vierem, tragam algumas, para aproveitarmos as sementes e ver se conseguimos fazê-las crescer aqui também. Que maravilha, não imaginava, e as bananas são saborosas, pois são, mais pequenas, mas muito boas. Tens de levar alguma coisa lá para a Bélgica, para matar saudades. Não é preciso, há lá de tudo isto, bem quase tudo, porque as mangas são maiores e não são destas pequeninas e pintalgadas as melhores e as que comíamos lá pela terra.
Notícias de Frederico e Ambrósio, sabem como estão? Aquilo nunca mais acaba, pensávamos nós que tínhamos uma guerra e esta, o que é? Uma carnificina é o que é. Nunca pensei e a verdade é que não me arrependo nada de ter vindo embora, só lamento a preocupação que vos dei. Tanto quanto sabemos estão bem só não gostei muito da voz do Frederico, pareceu-me triste, mas garantiu-me que estava tudo bem. O Ambrósio lá vai e é quase general, quem diria? A minha opinião é que deviam largar aquilo tudo, logo que o conseguissem e que viessem embora que aqui sempre têm quem lhes queira bem. O problema é que agora não os deixam vir de qualquer maneira, mas já nos garantiram que assim que pudessem viriam, estavam mesmo a pensar organizar as coisas de maneira a poderem vir os dois juntos. Isso é que era uma alegria e se pudesses cá estar também era uma festa, todos juntos de novo, vamos ter esperança que isso acontecerá.
Os quinze dias de férias de Natal passaram quase sem se dar por eles e agora, reunidos à volta do portão de casa dos pais, todos os amigos se despediam, abraços beijos, votos de boa viagem, não se esqueçam de ligar quando chegarem, para ficarmos descansados. Mãos no ar, o adeus até à próxima, venham depressa e naqueles olhos cansados e gastos pelo tempo e pela carga de desgraça que lhes caiu em cima, umas lágrimas, pequeninas, sentidas, foram rolando cara abaixo.