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Caneta da Escrita

Temas diversos, Crónicas, Excerto dos meus Livros.

Temas diversos, Crónicas, Excerto dos meus Livros.


11.06.18

 

 

Há relativamente poucos dias escrevi alguma coisa sobre a vergonha, a vergonha que senti por assistir a uma degradante situação de abandono daqueles que um dia, um longínquo dia, acreditaram que Portugal era a sua pátria.

 

Parece que me estava a antecipar a um programa a que assisti na RTP1 sobre uma operação que os portugueses organizaram na Guiné Conakri para resgate de prisioneiros, portugueses, que lá se encontravam, para além de outros objectivos estratégicos na altura.

 

A esta distância, não me interessa se a operação era boa ou má para Portugal e para a então guerra que se estendia a todas as ex-províncias ultramarinas.

 

Só me interessa o aspecto humano daquilo a que assisti.

 

Morreu muita gente, na quase totalidade elementos do contra da própria Guiné Conakri, a operação não se concluiu com a totalidade dos objectivos expressos à partida, mas redundou num profundo êxito porque foram resgatados todos os prisioneiros portugueses que lá se encontravam. Nem os americanos fizeram isto no Vietnam e eram muitos mais e mais bem armados.

 

O importante para mim foi ouvir aqueles homens, verdadeiros portugueses, ainda que de outras cores, a desfilarem o orgulho de serem comandos africanos do exército português e de terem conseguido resgatar todos os “nossos camaradas aprisionados”.

 

“Nossos camaradas aprisionados”, esta frase, dita com um brilhozinho nos olhos, diz tudo o que se possa dizer.

 

Por mim, posso adiantar que, ainda que o país não os acarinhe, eu também, e estou certo que muitos mais dirão a mesma coisa, estes homens são e serão sempre “nossos camaradas”, nossos companheiros de boas e más horas que, tristemente, têm sido abandonados pelos que agora clamam pelo valor da pátria.

 

Fiquei orgulhoso de os ter tido como camaradas.


10.06.18

 

 

Cumpre-se, hoje, mais um dia de Portugal, perdoem-me ficar só por aqui.

 

Neste dia são homenageados aqueles que passaram além da Taprobana, que dobraram o cabo Bojador, os que defenderam a pátria, os que se notabilizaram de qualquer modo, de forma a serem publicamente reconhecidos como tal.

 

Também é neste dia que se homenageiam os combatentes do ultramar.

 

Felizmente há este dia para os homenagear, digo felizmente, porque durante o resto do ano são pura e simplesmente ignorados, olhados com desdém e até amaldiçoados, não se lhes dá nenhuma atenção nem se honram os princípios que os levaram a sacrificar-se, e a sacrificar as próprias vidas, em prol de uma nação que não os recebe como verdadeiros heróis, que o foram em situações bem difíceis.

 

Resta-lhes a fria listagem dos nomes em painéis pendurados num muro em que se pede silêncio e recolhimento ao visitante e, todos os anos, uma coroa de flores.

 

Hoje ser herói é ser jogador de um clube desportivo ou da selecção nacional, como está agora em voga.

 

Hoje ser patriota é desfraldar a bandeira nacional sempre que há jogos de futebol em que a selecção é participante.

 

Hoje ser herói é muito pequenino.

 

Ser herói nestas circunstâncias demonstra a que ponto chegou este país em que amiudadas vezes se troca a honra pela hipocrisia.

 

Não se conhecem as letras.

 

Não se sabe a história Nacional.

 

Não se conhece o hino Nacional.

 

Não se sabe até o que significa o feriado do 25 de Abril ou mesmo o de 10 de Junho.

 

Mas conhecem-se os nomes dos jogadores da selecção.

 

E, todos babados, olhamos para os nossos filhos quando os vemos discutir futebol ou a vida dos Ronaldos da bola.

 

Que futuro será o nosso se não honramos nem nos orgulhamos do passado.


27.04.18

 

 

As andanças pela cidade levam-nos à descoberta de coisas que por tanto serem vistas nunca são apreciadas.

 

Um dia destes dei por mim num passeio pela cidade até a um determinado objectivo.

 

Meia hora de metro até à baixa, meia hora de encontros e desencontros em que, por não ter levado a companhia do costume, um livro, me vejo a imaginar e auscultar as pessoas que entram e saem da carruagem onde me encontro.

 

Gordos, magros e assim-assim. Alegres alguns, outros tristes e um matiz de linguajar inconstante que de tão diferente nos impede a percepção do que quer que seja.

 

Sinto-me num caldeirão de costumes e culturas inimagináveis alguns anos atrás. Árabes, Indianos, Paquistaneses, Africanos de várias origens, até Europeias, europeus do norte, do centro, do leste e até do oeste  e Angolanos.

 

Inconfundíveis estes Angolanos, pela sua maneira de estar, pela linguagem que tem aquela acentuação especial que só ouvidos acostumados distinguem. Atrevo-me a imaginar que num futuro não muito distante esta maleabilidade e esta doçura adaptativa do português-angolano vai ser uma língua tão agradável e apetecível como o foi a descoberta da entoação da língua pelos brasileiros há uns anos.

 

Portugal está transformado no centro do mundo, no ponto de encontro de tudo o que são culturas das mais diversas.

 

Chegada ao destino. Baixa-chiado.

 

Ao sair da estação sou de imediato invadido pelo intenso brilho do sol, logo hoje que me esqueci dos óculos escuros, não faz mal, é só cerrar um pouco as pálpebras e a coisa vai.

 

O calorzinho que nos envolve é delicioso, tendo em vista que o passeio do cão na noite anterior foi bem frio, um dia extraordinário se nos lembrarmos que ainda há dois dias chovia a cântaros.

 

A pé até à CML onde estava a mostra de documentos da República, renovando energias com o banho de sol que nos acompanhava.

 

Gostei da mostra disponibilizada em termos documentais e fotográficos e apreciei algumas das razões par que a monarquia tenha sido ostracizada e derrubada por um golpe militar para que fosse aberto o espaço para a implementação da república.

 

Rezava assim o epitáfio da queda da monarquia:

 

“R.I.P. finou-se a monarquia

 

Viva a República

 

Agora esperamos pelos breves progressos da nova civilização

 

Viva a República

 

Lisboa, 12 de Outubro de 1910”

 

O que me espanta no meio de todas estas revoluções de que este país tem vindo a ser palco é que, seja qual for a época, seja qual for o regime, a desculpa foi sempre a mesma, a defesa intransigente do povo português.

 

Foi assim na implantação da República, foi assim no 25 de Abril de 1974.

 

O povo português, esse denominador comum, sempre esperou que a sua incondicional entrega a estas revoluções tivesse como resultado a sua melhoria de vida, maiores garantias de apoio social, melhores empregos, no fundo uma vida mais próxima ao que sempre foi a vida europeia, afinal era isso que movia as revoluções.

 

A prática, no entanto, é bem diferente. Então acabou-se com a monarquia, acabou-se com os grupos privilegiados em nome do sacrossanto povo e o que vemos hoje?

 

A criação de uma nova monarquia, agora pode dizer-se que esta é uma monarquia republicana pois basta olharmos à nossa volta para reparar que os políticos, na sua maioria, não são mais do que isso. Sempre os mesmos, legislando a seu favor em tudo o que são benesses, colando-se às cadeiras do poder e da assembleia com a agravante que em grande parte nunca trabalharam na vida para além do que fazem depois de eleitos.

 

São estes senhores, que dizem representar-nos, intocáveis, inimputáveis, inatingíveis e inamovíveis.

 

Reproduzem-se em quantidades insuportáveis para este país, para o erário público e para este povo que lhes paga tudo. Chegam mesmo a herdar as cadeiras dos papás, impressionante.

 

A nova monarquia.

 


02.04.18

 

 

Passados que foram os momentos de ternura e carinho, amenizada a saudade, se bem que de quando em vez e a cada passagem ia mais um beijo e um abraço, apertado, até os corações se sentirem um ao outro, a preparação da ceia de Natal estava em andamento.

Da cozinha para a sala, da sala para a cozinha, era um corrupio de andanças, pratos, travessas, pequenas taças, de tudo se ia enchendo a mesa. Era grande esta mesa, mas, com a contínua chegada de novos acepipes logo se tornou pequena e foi necessário arranjar apoios suplementares, para isso serviam o topo dos armários, decorados a condizer com a época e também já repletos de iguarias. Coscorões, figos, nozes, amêndoas, tâmaras, pinhões, e um sem fim de pudins e outras coisas mais, não faltavam o tradicional bolo-rei, tamanho familiar que todos gostavam, e a lampreia de ovos que os meninos, agora crescidinhos, sempre adoraram.

Estava composta a mesa, cheia como nos velhos tempos e sobretudo, cheia de calor humano, cheia de carinho e de todo o amor que punham em tudo o que faziam. Olhavam para ela e sentiam-se felizes por, depois de tudo o que passaram, nunca se terem separado e terem conseguido manter intacta aquela amizade que acabariam por levar para o túmulo. Ainda assim, não deixavam de pensar nos seus quintais da Vila Alice, quanto não dariam para que esta consoada se realizasse debaixo da velha mangueira que tanto lhes deu, desde a sombra nos dias mais quentes, passando pela deliciosa fruta que dela brotava até aos momentos de prazer por ver os filhos treparem e executarem as suas tropelias nos seus ramos frondosos. Diziam até que os ramos se tinham esticado mais e tornado mais fortes para os suportar, para que não caíssem e se magoassem na vertiginosa descida, grande mangueira.

A nostalgia de ter perdido o que consideravam o paraíso na terra, o seu cantinho de vida, só era suplantada pelo prazer de, finalmente se encontrarem de novo todos juntos e, afinal, terem conseguido recomeçar a sua vida, ainda que em outros moldes, mas de forma segura e consistente, eram felizes, apesar de tudo. A chamada para a mesa foi antecipada pelo toque de uma pequena sineta que quebrou a conversa e a azáfama da cozinha, a algazarra que se seguiu tinha a ver com quem ocupava o lugar de quem, ao lado de quem ficavam, quem estaria mais perto de quem. A cabeceira da mesa foi cedida, em uníssono, por todos, ao dono da casa, ladeado pelos seus dois eternos amigos e vizinhos ao que se seguiram os lugares ocupados pelas mães e depois a rapaziada. Primeiro Meia de Leite e a sua prole, excepto o mais pequeno, ainda bebé e sentado numa cadeira apropriada à sua idade, em frente a Meia de Leite e Jeanne sentaram-se Branquelas e Noite Escura, prontos a dar início aos pratos quentes que estavam a ser depositados na mesa.

Uma enorme travessa continha o tradicional de um jantar de Natal que se preze, bacalhau, cozido com tudo o que merecia, para os mais saudosos ainda havia outra travessa, com carne, um ar delicioso, cabrito assado com batatinhas a murro, uma comida que ninguém recusava e todos haviam de lhe deitar a mão depois do bacalhau, só para provar, justificavam, mas era gula mesmo, saborear os pratos que sempre comeram e adoravam. Digam lá se o cabrito é ou não uma delícia? Pelo aspecto assim parece, diziam. Este é dos verdadeiros nascido e criado ao pé de nós, aqui na quinta, alimentado com o melhor, para se fazer tenro e gostoso para hoje. Não sabia que também tinham criação aqui na quinta? Temos, pois, grande parte do que comemos somos nós mesmos que cultivamos e criamos, amanhã hão-de dar uma volta para ver isto, galinhas, patos, cabritos, até o peru do almoço de amanhã aqui foi criado, isto é quase o paraíso. Ainda ficarão mais boquiabertos quando virem a fruta que aí temos. De tudo, desde as frutas comuns aqui do país até às nossas frutas, mangas, papaias, ananás, bananas, tudo o que conseguimos plantar deu fruto. São as mãozinhas dos vossos pais que amam a terra e ela retribui com estas maravilhas.

E vocês, contem lá como vieram cá parar, que tem sido a vossa vida que a nossa tem sido só preocupações convosco. Acabaram-se, disseram quase em simultâneo os dois. Acabaram-se? Que querem dizer com isso? Queremos dizer que viemos de vez, que não voltamos, isto se nos quiserem cá, que não temos outro sítio para onde ir. Se os quisermos cá! Já viram estes malandrões? Continuam na mesma, com um corpanzil de homem e uma matreirice de criança. Claro que os queremos cá, todos têm o seu lugar guardado, junto ao nosso coração e, em casa, com o quartinho à vossa espera, esta é a vossa casa, esta é a vossa família e nós todos, carregou “no nós todos”, somos a vossa família, não vão para mais nenhum lado, é aqui que ficam. Hoje estou mesmo feliz por os ter cá aos três, parece que ganhei anos de vida e não sou só eu, as vossas mães estão que nem conseguem falar de tanta felicidade e agora dizem que vieram de vez? É o milagre do Natal que nós precisávamos para que a alegria fosse completa.

Depois de muito instados, entre uma garfada e outra, com um gole do vinho escolhido para a noite, que tinha de ser especial, lá foram contando a sua vida desde que os meteram no avião para cá, guerra e mais guerra, traições, liquidações sumárias de muita gente e muitos amigos levou a que equacionassem a saída, já não acreditavam naquilo. A ganância de alguns, não tinha limites, levou à miséria de muitos, ia levar muitos anos até ser uma terra em que se poderia viver tranquilamente e quando chegaram a essa conclusão, só lhes restava vir embora. E perdem tudo por que tanto lutaram? Não, vemos a coisa por outro lado. Ganhamos a vida que tínhamos perdido.

O calor do jantar e o vinho encorpado aliados ao fogo aceso na lareira foram aquecendo o ambiente e a conversa e assim foram traçando planos para o futuro, planos em que também Meia de Leite, a viver na Bélgica, estava incluído. Jeanne, já mais do que uma vez lhe tinha confidenciado que tinha todo o interesse em vir viver para este quente e caloroso país, o único obstáculo era o emprego de Josué, conseguiria trabalho por aqui? A coisa não estava muito famosa. No entanto esta conversa com os amigos de infância abriu-lhe uma nova via, queriam formar uma empresa em que os três participassem de forma igual, numa área que estava em crescimento e em que eles eram peritos, a segurança, precisavam dele aqui, junto a eles, para criarem o seu próprio futuro. Estava decidido, avançavam e assim que estivesse tudo a andar Meia de Leite regressaria para junto deles com toda a família.

Já tinham passado pelo bacalhau, deram uma voltinha pelo cabrito, tudo sempre muito bem regado, estavam agora a entrar na área dos doces e eles eram um mar imenso para deglutir. Não podiam comer muito de cada um ou seria uma desgraça, mas sabia bem ir debicando um pouco aqui, mais um bocadinho ali. Agora um cafezinho, que isso não dispensavam de tão enraizado estar o hábito, acompanhado do respectivo digestivo, que de digestivo só tinha o nome, mas que na verdade aquecia o coração nestas noites frias. Aconchegaram-se à volta da lareira, ali estavam todos juntos como sempre embora à lareira e não debaixo da mangueira. Em todos os rostos se lia o prazer que sentiam de ali estar e a felicidade de estarem todos, não faltava nenhum, replicavam assim os serões de outros tempos, agora, já com mais três, a mulher de Meia de Leite e os dois filhos, a Vila Alice estava ali naquele momento e a aumentar na Europa.

Foi nesse momento de conjunção de vontades e sensações múltiplas que alguém, olhando para a janela, diz, está a nevar! A nevar? Aqui? É muito raro, temos de ver. De repente todos se levantaram para assistir ao espectáculo que a natureza lhes proporcionava nesta noite tão especial em todos os sentidos. De todos eles só Meia de Leite e a mulher conheciam a neve e estavam habituados a ela por viver num país em que era normal isto acontecer. Para os restantes era novidade, tão novo que se precipitaram para a janela quase ao mesmo tempo, o que viram emocionou-os o chão, no exterior começava a ficar totalmente branco com a quantidade de flocos que lhe caíam em cima, do céu desciam, em danças acrobáticas, fiapos de uma brancura impressionante iluminando a noite na serra. Lindo, proferiram entre eles.

Temos de ir lá fora ver isto, sentir a neve nas nossas mãos, vê-la a cair-nos em cima. Se bem o disseram melhor o fizeram, casacos vestidos e todos para a varanda. Olhavam a neve como algo de irreal, uma novidade absoluta, todos juntos, abraçados e mãos entrelaçadas mantiveram-se por minutos a apreciar o belo espectáculo. A natureza quis associar-se ao momento que viviam, pensaram, quis agradá-los com esta maravilha, coisa rara nesta região do país, mas hoje foi o dia de cair em abundância suficiente para que eles se alegrassem. Daqui, do cimo se vê o mar ao longe, mais à frente fica África e um bocadinho mais ficou a Vila Alice, e nós, neste preciso momento, rodeados de neve.

Sem que o esperassem, Branquelas, solta-se dos braços que o apertavam, desce ao terreno apanha um pouco de neve, enrola-a e dispara em direcção a Noite Escura que a recebe em cheio no peito. Não tardou que este também estivesse embrulhado na neve a fazer bolas e dispará-las para cima de todos os que conseguia atingir. E foi uma festa, bolas de neve cruzavam os ares em direcções opostas procurando chegar sempre aos alvos a quem se destinavam. O primeiro Natal do resto das suas vidas, naquele pequeno rincão da serra estava um bocado do seu velho bairro, a Vila Alice.

Visto do céu, um grupo de pessoas felizes brincavam na neve que este lhes proporcionara como forma de compensação das vicissitudes que atravessaram. Desde o velho bairro, a Vila Alice, até ao cimo daquela serra, um longo caminho foi percorrido, encontraram a sua paz, o seu cantinho e continuavam todos juntos, três famílias, três amizades, de várias cores, mas com corações semelhantes, uma grande família. Grandes corações, crescidos e vividos num grande bairro que agora era só uma recordação, mas que mandou tanta gente boa para todo o mundo, para aqui também, a sua Vila Alice,

Um bairro de recordações, um mundo de emoções.


01.04.18

 

Ainda a manhã não se anunciava e já Noite Escura e Branquelas estavam de pé, hábitos que dificilmente se perdem. Tomar banho, vestir-se, descer para o pequeno-almoço, já de mala na mão e desandar para o comboio que os levará ao seu destino final. Estavam com alguma excitação, iam finalmente estar com os seus amigos e familiares que há tempo não viam.

Apanharam o táxi em direcção à estação dos caminhos-de-ferro, compraram os bilhetes e esperaram a chegada da composição que romaria a sul. A sul, perto do sol onde o calor se fazia sentir mais e um bocadinho mais perto do continente de onde vinham, da sua terra. Ao fundo da linha começavam a divisar a sua silhueta, vinha aí, apitou ao entrar na estação, lentamente foi-se chegando à frente, até ao fim da plataforma, parou, dois apitos e as portas começaram a abrir-se.

A viagem, que não tardou a iniciar-se, fez-se no silêncio de que cada um deles necessitava para pôr em ordem as suas ideias, acertar a cabeça com a realidade que agora se fazia nova. De quando em vez uma palavra trocada entre ambos justificava este recolhimento, esta entrada no seu interior, no mais profundo do seu ser, onde encontravam as suas raízes, as suas ligações, os seus ideais, agora, em alguns casos, postos em causa. Não viam os embondeiros ao longo da linha-férrea, não viam um ou outro animal selvagem que se atrevesse a aparecer à passagem do comboio, isso era lá, na sua terra. Umas horas depois estavam a apear-se e a procurar transporte para o que viria a ser a sua morada de agora em diante.

Dadas as indicações necessárias lá seguiram estrada fora em direcção à montanha onde viviam os pais, à sua montanha pois ali viveriam também. Estrada sinuosa, estreita, com algum trânsito, o que a tornava ainda mais perigosa, mas a bandeirada era grande e o motorista não tinha pressa, ia devagar, em segurança, levá-los-ia ao seu destino. Estavam ansiosos para chegar, mas aguentavam a sua ansiedade como podiam, notava-se, no entanto, o seu nervosismo. Como seriam recebidos, como ia ser o encontro, perguntas a que só obteriam resposta aquando da sua chegada.

Subiram o monte, rodopiaram pelas íngremes estradas, curva aqui, contracurva logo a seguir, subindo, planando sobre uma altura considerável de onde até se via o mar lá longe. Serpentearam por entre campos de cultivo ou mais ou menos cultivados, alguns em perfeito estado de abandono, começaram a divisar ao longe um conjunto de três casinhas, cuidadas, separadas por uma ampla área de terreno tratado. Foram-se aproximando, cada vez mais perto, chegaram ao que se poderia designar por um portão, nem fechado nem aberto. Dois pilares laterais e duas grades que se abriam ao menor contacto logo que retirada a lingueta que as segurava uma à outra.

Das três casas, fechadas que o frio assim o exigia, saía uma luz quase irreal, as janelas iluminadas num ambiente tão frio, cheirava mesmo a natal, parecia um daqueles postais em que até a neve ajudar a perceber a época em que se está. Das chaminés, saía fumo, esbranquiçado, enrolado e dirigindo-se para o alto, um ligeiro vento, frio, espalhava-o depois bem por cima das casas e o cheiro a lareira era intenso, sobrepunha-se ao cheiro do campo e, àquela hora, este era bem forte.

Apearam-se do táxi, pagaram a corrida, retiraram as malas e atravessaram o portão. Lentamente, como quem queria guardar na memória o que viam, encaminharam-se para uma das casas, a que se encontrava a meio das outras duas. Em frente à porta, pousaram as malas no chão, encheram o peito, olharam um para o outro e, com os nós dos dedos, bateram à porta. Por uns segundos ficaram em suspenso, quem viria abri-la? Quem é, suou uma voz de dentro. Visitas, responderam juntos. Quase automaticamente ouviram um grito vindo do interior, mesmo por trás da porta, ao mesmo tempo a porta abre-se com uma rapidez incrível.

Não acredito que sejam vocês, não acredito que estejam aqui, belisquem-me para eu ter a certeza, logo os dois juntos, que felicidade, entrem que está frio. Entraram e mal a porta se fechou os abraços foram mais que muitos, beijos, comoções e lágrimas. Mal ouvi as vozes reconheci-as logo e nem queria acreditar, os vossos pais vão ficar radiantes. Vai ser uma verdadeira consoada, todos juntos de novo, o Josué também cá está com a mulher e os filhos, vou chamá-lo. O Meia de Leite está cá? Então estamos todos, todos e mais alguns que ele já se adiantou com a descendência.

Meia de Leite aparece na sala e não se fazem rogados em distribuir abraços e lágrimas entre eles, os três mafarricos de novo juntos e há quanto tempo não viam Meia de Leite, que prazer, que satisfação. E Jeanne, como está? A tratar do mais pequeno, mas não demora nada. Vieram mesmo na altura certa, vamos cear todos juntos, agora são mais dois pratos, mas são dois pratos que vão encher a casa. Onde vai ser a ceia? Pelo que estamos a ver vai ser mesmo aqui, não nos enganámos na casa. Vai ser aqui, daqui a nada os vossos pais estão a chegar, vai ser uma surpresa e tanto. Agora não vão ter com eles, esperem aqui que eles cheguem que eu também quero ver a cara deles quando vos virem cá.

E chegaram, os pais de Noite Escura e de Branquelas aproximaram-se da casa e empurraram a porta, o velho hábito da porta sempre aberta a quem quisesse entrar estava neles enraizado, já vinha dos tempos do seu velho bairro, da Vila Alice, não se perdiam com facilidade. Nas mãos vinham os sacos com lembranças para todos, quase todos, que não contavam que os filhos lhes aparecessem assim de repente, estavam mesmo muito longe de imaginar que isso aconteceria, mais a parte que lhes cabia do repasto, da ceia da consoada, sempre fora assim, cada um levava o que podia e tudo junto era um excelente momento de convívio e um lauto jantar.

Atrevemo-nos mesmo a pensar que ao cruzar o umbral daquela porta iam a pensar nos filhos, que bom seria que ali estivessem, era o segundo Natal nesta terra e seria muito melhor, muito mais aconchegante e com muito mais calor e amor se os filhos ali estivessem, se se juntassem todos como sempre aconteceu. Nesse preciso momento, uma pontinha de inveja lhes ruía o coração, sem nenhuma maldade, só a saudade dos seus, Francisca e José, pais de Meia de Leite, eram os únicos que tinham o filho junto a si, era só isso que invejavam e mesmo assim agradecendo a Deus por eles o terem ao pé, por sentirem o carinho do seu rebento e dos rebentos que produziu junto a eles. Um dia, quem sabe? Poderiam ter os seus ali também.

Assim que a luz interior se esvaiu para a rua pela porta aberta, criando uma sombra que se prolongou ao exterior pousando delicadamente a seus pés, ficaram petrificados, incapazes de articular um som. Por momentos, quase se poderiam contar séculos naquele momentâneo silêncio, os olhos fixaram-se no interior da casa, iluminada e aquecida para a noite invernosa que se vivia. Incrédulos, olharam-se ainda uns aos outros até que uma explosão de alegria assomou àqueles rostos, tisnados pelas gerações de vivência debaixo do sol implacável de África e agora remetidos ao sol deste sul ensolarado, mas frio, que de alguma forma lhes lembrava o que deixaram lá longe. Meus filhos, suou.

Inacreditável, estavam ali mesmo à frente deles, ao alcance de uma mão, os filhos que há tanto não viam, que tantas preocupações lhes davam pela ausência do calor familiar, sempre tão longe e tão sujeitos às vicissitudes da guerra em que estavam envolvidos. As mães, sempre as mães, foram as primeiras a avançar na sua direcção e, na confusão de beijos e abraços, de lágrimas e choros, ninguém sabia muito bem quem era filho de quem e se o abraço que dava era mesmo ao seu filho se ao filho do seu amigo, não interessava nada, o importante é que os filhos estavam ali, inteiros, intactos e vivos, os seus filhos. Os pais não tinham lugar nestes abraços, estavam demasiado apertados para nele se introduzirem, mas as lágrimas também corriam pelos rostos cobertos de sulcos que a vida se encarregou de ir abrindo, criando rios por onde agora corria a seiva dos seus olhos marejados de felicidade, abraçaram-se também e nesse abraço couberam todos, mães filhos e amigos.

De mãos dadas e abraçados, foram entrando, a porta fechou-se atrás deles e durante alguns minutos mais se prolongaram os beijos e abraços até ao momento em que alguém propôs que se brindasse ao momento de suprema felicidade que todos viviam. Flutes cheias, copos ao alto, à família, à amizade, ao futuro, feito o brinde os copos depositados na mesa e as mãos ainda entrelaçadas de ternura, buscando o que há muito não tinham por perto, os filhos, os filhos dos amigos, os amigos. Não fosse o frio tão intenso e dir-se-ia que ainda estavam num quintal quente de África, debaixo da sua mangueira onde tantas consoadas foram feitas, ali mesmo na Vila Alice, onde depois da janta a miudagem se reunia para uma última brincadeira na rua com a vizinhança.

Era talvez o único dia do ano em que havia pressa em ir para a cama mais cedo, não por cansaço, mas porque havia que acordar bem de manhãzinha, pois os presentes que ficavam no sapatinho só de manhã, ao acordar, se veriam. A alegria que era ver a miudagem de volta dos pequenos e parcos embrulhos, mas, tão cheios de amor e carinho que transbordavam a felicidade ao redor. Depois de verificarem que era mesmo aquilo que tinham pedido ao pai Natal, era uma luta para se vestirem antes de irem para a rua mostrar os presentes aos amigos e iniciar novo ciclo de brincadeiras com novos amores. Era uma verdadeira festa, com pouco se fazia muito e a felicidade espelhava-se naqueles pequenos rostos sem que precisassem de grandes e faustosos presentes.

A felicidade de ser criança naquela época não se compara com nada do que é agora. Tudo era novidade, por mais insignificante que fosse o presente era um presente, uma via para novas aventuras, para descobertas ainda por explorar, por incredulidade, por crença, era, em suma, a felicidade que se espalhava por pequeníssimas coisas. Aquele bairro vibrava por momentos na esperança da paz e harmonia entre todos os seres da terra, as crianças eram bem o exemplo do que poderia ser o mundo se os adultos não o estragassem. A Vila Alice no seu melhor, e com a criançada pelas ruas em plena brincadeira e felicidade.


31.03.18

 

 

Desperta dos seus pensamentos quando, pelo canto do olho, habituado que estava a usá-lo para uma visão periférica mais alargada, depara com um vulto que caminhava na sua direcção. Não lhe era desconhecido, desengonçado, alto e magro como as coisas finas, Branquelas, em pessoa vinha aí para esperar por ele e ia encontrá-lo.

Olhou-o de frente, ele também depositou o olhar no único vulto que lhe chamaria a atenção naquela esplanada, Noite Escura. Sentado, com a cerveja meio bebida, ali estava à sua espera. Levanta-se já com o sorriso estampado no rosto, dois sorrisos, dois amigos que apesar de todas as vicissitudes não se largaram pelos desencontros da vida. Um abraço, umas lágrimas de parte a parte, dois corações acelerados e o bater de mãos nas costas um do outro. Finalmente juntos de novo, finalmente livres dos grilhões que os prendiam.

Sentaram-se por momentos tentando aliviar assim a comoção que os invadia, pediram mais duas cervejas, beberam os primeiros goles em silêncio, olhos nos olhos. A cumplicidade entre eles era tanta que sabiam perfeitamente o que os seus olhos estavam a dizer, saudosos das meninices da sua infância, juntos de novo para encetar uma nova vida. As lembranças dos seus perpassavam-lhes pela cabeça e de quando em quando humidificavam-lhes os olhos. Finalmente, atira de repente Branquelas, finalmente, retribui Noite Escura. Estamos num país que não conhecemos, mas foi o que nos acolheu e do qual vamos fazer nosso a partir de agora. O importante é deixar para trás tudo o que aconteceu e recomeçar a vida a partir deste zero em que nos encontramos, felizmente, tivemos o bom senso de fazer os nossos pais saírem a tempo daquele inferno, já temos onde nos acoitar. É verdade, foi a melhor decisão que tomámos, nem sei o que seria deles se lá tinham ficado, mesmo que não lhes fizessem mal, não iam aguentar aquilo, não da forma que tomou.

Já reparaste que estamos nas vésperas de Natal? É verdade, dia 23 de Dezembro, amanhã é a noite de vinte e quatro aquela que tradicionalmente passávamos juntos, as famílias reunidas à volta de uma mesa comum em que nada faltava para comemorar a data, ainda que vivêssemos em África e não na Europa. Era bom que este Natal conseguíssemos estar todos juntos de novo, mas não sei se Meia de Leite cá estará. Se o conseguíssemos era a comemoração do nosso regresso e da verdadeira amizade que sempre nos uniu, agora já com Meia de Leite a produzir uma próxima geração e já vai com dois, não pára.

Para estarmos lá a tempo devíamos sair daqui hoje e assim já passávamos o dia com eles, sinto saudades de abraçar os meus pais. Podemos ir logo de manhã de comboio e chegaremos aí pelo meio-dia, ou, em alternativa, ir hoje mesmo de autocarro, mas confesso que prefiro o comboio, é mais confortável e sempre vamos vendo a paisagem que nos cerca. Por mim está bem de comboio, tenho é de sair do hotel onde estou e procurar outro para passar a noite, hoje mesmo tenho de sair de lá que ainda é pago pelo governo. Não tens problema, ficas no mesmo em que eu estou e assim é só tomar o pequeno-almoço e partirmos para a estação bem cedo. Encontramo-nos no meu hotel que eu vou-me chegando e preparando o terreno, vou arranjar-te o quarto para hoje que aquilo não está cheio e logo que chegares já o tens à tua disposição. Depois damos uma volta por aí, jantamos e preparamo-nos para a partida de amanhã.

Deste notícia de que estávamos cá? Estarão à nossa espera? Não disse nada a ninguém, estou aqui perfeitamente incógnito, aliás, para as nossas famílias estamos os dois ainda por lá, longe daqui. Queria que fosse surpresa, uma daquelas que tinham quando, em miúdos, lhes pregávamos alguma. Vão ficar boquiabertos por nos verem e mais ainda quando souberem que é de vez, não precisarão de se preocupar mais connosco, ficaremos com eles, ao pé deles. Já me sinto feliz só de pensar com que cara ficarão quando nos virem, vai ser uma surpresa e tanto. Se calhar não à jantar para todos? Olha, parece que era a primeira vez que entravam pela casa bocas a mais para comer e não havia que chegasse. Já os conhecemos bem, não perderam os hábitos de certeza, chegamos e é uma festa, a seguir aumentar a manja que há mais duas bocas famintas dos quitutes da família, prontas a devorar. Vais ver que tenho razão e se não houvesse comida suficiente, repartia-se a que houvesse, sempre foi assim, o importante é a felicidade de nos verem, de nos terem ali à mão.

Mala arrumada, saída para jantar por perto, uma volta pela cidade ao anoitecer, quando ela se preparara para se resguardar do frio deste inverno. Podiam tê-lo feito no hotel mas gostavam de sentir a cidade, correr algumas tasquinhas tão típicas e onde se comem verdadeiros tesouros da culinária do país. Escolheram uma das várias que na rua onde estavam se amontoavam lado a lado, entraram que na esplanada estava frio e eles ainda não estavam completamente habituados a ele. Sentiram o bafo quente que vinha do interior logo que abriram a porta, os cheiros a comida acabada de fazer despertaram-lhes o apetite. Escolheram uma mesa perto da janela da rua, sempre apreciavam os passantes, escolheram, pela carta, os pratos que queriam com alguma dificuldade dada a variedade do que se apresentava.

Bacalhau para mim, diz Noite Escura, eu também quero. Sempre comemos disto mas aqui tem outro sabor, traga-nos bacalhau à lagareiro e para beber uma garrafa de vinho, qual é a região do vinho da casa? É boa, pode ser, essa mesma. Estás com vontade de apanhar um pifo, Branquelas. Não, não estou, estou só satisfeito por estarmos aqui os dois e isto tem de ser comemorado, não é todos os dias que se consegue sobreviver ao que nós passámos e voltar para os nossos intactos, esta é a nossa comemoração pela vitória que conseguimos ao sair de onde saímos e nas condições em que o fizemos. Vamos beber à nossa saúde e já agora a todos os nossos amigos e familiares.

Tilintaram os copos, saborearam lentamente cada gota daquele néctar, sentiram-no deslizar pela garganta, aqueceram-nos e, num estalo de língua, terminou a primeira prova. É isto que nos aquece por aqui, já estou a ver, e aquece bem que já me sinto encalorado. Conversaram sobre o que iria acontecer a seguir, o que iriam fazer, como iam ganhar a vida nestas paragens, a bem dizer nunca tinham feito mais nada do que a guerra, não sabiam fazer mais nada, mas alguma coisa se haveria de arranjar, não iam ficar de braços cruzados ou a viverem à custa dos pais. Ao mesmo tempo que o diziam já Branquelas imaginava algo que os poderia encaminhar para uma vida activa e em que pudessem até pôr em prática os seus conhecimentos da guerra que atravessaram, logo se veria se a ideia tinha pernas para andar, para já era só uma ideia.

Chega o bacalhau em travessas de barro, fumegante, o azeite em que tinha sido cozinhado ainda fervia, o aspecto delicioso, tostadinho e com umas batatinhas pequenas a envolvê-lo, o aroma do alho a entrar-lhes pelas narinas. Que delícia. Noite Escura não resistiu, pega no garfo e espeta uma daquelas apetitosas batatas, leva-a à boca e num repente atira-a para o prato, bolas que isto está mesmo a ferver. Pois está, isto é feito ao lume e o azeite ainda vinha a ferver, deve estar mesmo quente. Não é para comer assim, à glutona, é para se ir comendo, devagarinho, saboreando o verdadeiro paladar destas comidas, afinal isto é mediterrânico, as melhores comidas do mundo.

Despacharam o jantar, lentamente que a conversa estava agradável e da primeira garrafa de vinho já não havia rasto e a segunda para lá caminhava. Quem olhasse para os dois via reflectida, nos seus rostos, a verdadeira felicidade, não pela comida, que também ajudava, mas pelo prazer de estarem ali os dois. Sabes que nunca mais esqueci o nosso encontro naquela chana do leste, ficou-me gravada para sempre, à espera que disparasses sobre mim, porque eu era incapaz de o fazer contra ti, fiquei ali à espera e afinal és como eu, prezas mais a amizade que a lealdade a uma política. Enquanto esperava, naqueles segundos, pensava se serias capaz de o fazer, de disparar o tiro derradeiro, por outro lado, o coração dizia-me que não, que nunca o farias, tínhamos uma infância juntos, uma amizade indestrutível e que, logo ali, ficou provado que o era. Naquele dia, naquele preciso momento foste mais que um amigo para mim, olhei para ti e vi um irmão. Pois sim, um irmão preto que tinha um irmão branco. O ser irmão, não tem nada a ver com a cor da pele como bem sabes e sempre o provámos, tem a ver com sentimentos, tem a ver com aquilo em que acreditamos ser a nossa gente, aqueles que nos interessam verdadeiramente.

Toca aí e vira mais um copo que é para a caminhada até ao hotel. Amanhã será o primeiro dia do resto dos nossos dias, longe da nossa terra é certo, mas também, longe da guerra e junto à nossa família, esses é que são importantes e sê-lo-ão para sempre. Só lamento as preocupações que lhes dei, mas sei que me perdoam pelo meu sonho de construir um país novo e sem preconceitos. Não foste só tu Branquelas, eu também pensei que era possível, enganámo-nos, vai levar muitos anos até que seja possível que este sonho se torne realidade. Muitos anos mesmo.


30.03.18

 

 

Tudo de acordo com o planeado. Esta saída de Noite Escura, propiciou a fuga que encetariam, o abandono da sua terra, das esperanças e das ideias que Branquelas defendia calorosamente e por elas se passou para o outro lado e Noite Escura, nada politizado, mas encarcerado da sua entrega à guerra que sucedeu a libertação do país por imposição e não por sua própria opção.

Também ele olhou pela janela do avião que o levava para longe, oficialmente em trabalho, aquisição de material de guerra, no seu íntimo, ia para longe, mas para não voltar. De forma diferente de Branquelas, também ele sentiu o adeus, mas não com a profundidade do amigo. Estava cansado da guerra, estava cansado de um país onde, via a cada novo dia, crescer mais a distância entre quem era governado e aqueles que os governavam. Se os primeiros estavam cada vez mais pobres e miseráveis, subsistindo sabe-se lá como, já os segundos estavam gordos e luzidios de tanta ganância e riqueza acumulada sobre os corpos quase putrefactos dos primeiros.

Recostou-se na cadeira, ia à vontade, afinal era uma figura importante, tinha direito a viajar em classe superior, descansado, confortável, com todas as mordomias que o seu posto lhe garantia. Apesar de tudo, nada disto o atraía, estava distante desta política de destruição e fruição que nada de bom tinha trazido ao país, pelo contrário. Tinha visto a sofreguidão com se atiraram a todos os bens que podiam, nenhum era demais, quanto mais conseguissem mais importantes se sentiam e afinal, o que recebiam? Tudo feito, tudo preparado, nada tinham feito para os possuir a não ser ajudar a empurrar para fora os verdadeiros proprietários. Esta foi a grande revolução, pensou, tirar a uns para dar a outros, mas seleccionados, não era para todos.

Olhou de novo para fora, o avião rolava na pista, ganhava velocidade, mesmo ao fim da pista notou um pequeno e imperceptível impulso para cima ao mesmo tempo que se sentia enterrar na cadeira, o avião estava no ar, tinha levantado voo. Um longo silvo e um baque final, indicou-lhe que o trem de aterragem estava recolhido. O sinal de desapertar cintos foi apagado e de repente, dentro do avião nota-se uma azáfama extraordinária, pessoas levantam-se, conversam, andam pelo corredor, uma barulheira própria de uma feira, mas lá para trás, que, da cortina para a frente a classe era superior, nada de misturas.

Via agora as luzes da cidade a desaparecer ao longe, cada vez mais alto, sempre a subir até ver umas nuvens passarem-lhe pela janela. Não deixou de fazer o paralelo com a sua vida dos últimos anos, sempre a subir até à queda final que se iria consumar brevemente, quando tudo fosse abandonado em prol da sua sanidade mental e da sua família, que muito prezava, com quem tinha passado muito pouco tempo desde que assentara praça pela primeira vez. Era talvez a decisão mais difícil que tinha tomado, mas era irreversível, dentro em breve largaria tudo, todas as mordomias, o posto de general e o próprio país de que agora se despedia com um olhar vago e sem sentido.

Muitas horas de vôo, o bastante para pensar sobre a sua vida e afinar a forma de se desenvencilhar deste passado recente que o vinha atormentando. Quando despejou o último olhar sobre a cidade, daquela imensa altura, pareceu-lhe distinguir, ainda que de contornos difusos, o seu bairro, o seu velho bairro, a Vila Alice. O templo da sua meninice, a zona de guerra das brincadeiras com os seus eternos e inseparáveis amigos. Visto dali, mesmo sem ver, podia distinguir claramente a planta do bairro. A escola industrial, quase ao lado o liceu feminino e mais abaixo, mesmo em frente, ou quase, o cinema império, tantos filmes de aventuras viram ali os três juntos. A gritaria que era, sempre que o herói dominava o vilão da fita, filmes importantes para a formação do carácter dos três.

Depois aquela imensa rua que dividia o bairro a meio, até mesmo ao fundo, ao Macambira, uma rua que lhes serviu de pista de corrida de carrinhos de rolamento e de trotineta. Os largos que a ladeavam, o do ringue de patinagem, tantas quedas se deram ali e ninguém morreu por isso. A sua casa, a casa dos amigos e vizinhos, a mangueira que trepavam, tanta coisa vista do ar, vista daqui é como uma fotografia, toda a sua vida, a vida de todos com quem privava estava retratada nesta fotografia. Agora via nitidamente que até a sua saída dali lá estava, representada por um avião que voava alto, muito alto e para bem longe dali. Para um país diferente, um país que não conhecia e que tinha de começar a querer como seu, pois, assim seria para o resto da sua vida.

O barulho seco do trem de aterragem a abrir e posicionar-se acordou-o do torpor e sonolência em que se encontrava, estavam a aterrar, dentro de alguns segundos, o chão que se lhe depararia era outro, não o seu, que o conhecia bem, vermelho, com cheiros quando chovia. Este não o conhecia, era a primeira vez que o pisava, passaria a ser aquele de que nunca mais se separaria. Esta era só uma escala técnica, mesmo assim, fez questão de sair do avião e senti-lo debaixo dos seus pés. Ia seguir viagem para outro país da Europa, para cumprir as suas obrigações e deixar todo o material de guerra, que vinha adquirir, em boas mãos para seguir o seu destino, depois, só depois voltaria a este chão, a esta terra de vez, para não mais sair.

Estava certo que Branquelas já ali estava, andaria por certo a visitar a metrópole que nunca tinha conhecido e a força das circunstâncias o obrigaram agora a vir conhecê-la. Corria a cidade em busca de parâmetros para a sua nova vida, era aqui que agora passariam a viver, não propriamente na cidade de onde partiram os descobridores que chegaram à sua terra, mas mais para o sul, mais perto do sol e do calor que lhes lembraria a sua origem. Voltaria a pisar este chão dentro de três ou quatro dias e então, seria definitivo, já não seguiria o caminho de regresso.

Regressou ao avião que o havia de levar ao seu local de destino, uma capital europeia onde os contratos seriam assinados e o material posto à disposição do governo que o enviara. Depois era o regresso, já não com escala na metrópole, mas com mudança de avião, teria um ou dois dias para deambular pela cidade, de acordo com os horários que lhe traçaram, era nessa altura que estava decidido a encontrar o seu amigo e ambos, reunidos outra vez, rumarem a sul, rumarem a casa, aos seus, àqueles que realmente importavam.

O encontro tinha lugar marcado, todos os dias, desde que chegara, Branquelas passaria umas horas, ao fim do dia, na esplanada de um café muito conhecido, no centro da cidade, internacionalmente conhecido. Como não sabiam ao certo qual o dia que ele se poderia libertar, esta foi a melhor forma de concertarem o seu encontro e era o que Noite Escura faria nos dias que tivesse livre, ia procurá-lo a esse ponto específico, perfeitamente marcado e difícil de se enganar.

Os assuntos que o levaram a sair do país estavam todos tratados, tudo em ordem e organizado, sentia-se livre neste momento para dar asas às suas intenções. Logo no primeiro dia que teve livre, levantou-se cedo, preparou-se e, vestido de forma desportiva, quase indiferente no meio da multidão, andou pela cidade, visitou os pontos turísticos principais. Aproximando-se a tarde e a hora combinada para o encontro, dirige-se ao café combinado, procura lugar na esplanada, senta-se com as costas viradas para a parede do edifício, fica com um campo de visão excelente à sua frente. Pede uma cerveja, beberica lentamente e aguarda que Branquelas dê à costa.

Alarga o olhar sobre a praça, já a conhecia, não por ter cá estado, somente porque sempre ouvira falar dela, a estudara na escola, e das áreas adjacentes, uma praça histórica e com estória. Larga, dois fontanários, cada um em seu lado da praça, um imponente edifício num dos topos, um teatro. Mesmo ao lado, outro palácio, o palácio da independência, sorriu ao ler o nome do palácio no folheto turístico que tinha entre mãos, entre os dois, um mar de gente de todas as cores. Um bocadinho de África estava ali também, a tagarelice, as cores, o ajuntamento das pessoas, não tinha dúvida era África, estava em casa ou quase. Não percebia era como, depois de os seus países serem independentes livres do jugo colonial, esta gente se fazia à estrada e vinha para a metrópole, sem outros horizontes que a tentativa de viverem melhor do que nos países que deixavam, não ficaram melhores é a conclusão a que chegava, vieram procurar uma vida junto aos antigos opressores.

O olhar vagava pela praça, pela vetusta arquitectura que a compunha, pelo mar de gente que a cruzava. Esta praça, este país, era mesmo um ponto de encontro do mundo, indianos, paquistaneses, árabes, africanos, brasileiros, de tudo havia aqui e até, aqui e ali, alguns nacionais. Espantoso um país que se mistura com tanta gente diferente, que é tolerante o suficiente para permitir que aqui, mesmo sendo pequeno, caiba sempre mais e mais diversificada gente. Abençoado por Deus, com certeza, pensava para dentro. A visita ao castelo, sobranceiro à cidade, deixou-o estupefacto, uma vista a perder-se por cima dela e até ao rio, o casario típico por baixo das amuradas do castelo, tudo o fazia sentir-se admirado com um povo que cresceu a partir destas muralhas.

Sentia que desta gente saíram os melhores, os que desafiaram o desconhecido, os que procuraram alargar horizontes, os que levaram o nome do país muito mais longe, os que o seu país expulsou deixando um vazio em seu lugar, desagregando uma sociedade multifacetada para criar não sabia ainda o quê. Entristecia-o que isto tivesse acontecido.


29.03.18

 

 

Branquelas e Noite Escura não tinham uma vida fácil. Se o primeiro era um histórico do movimento, o segundo que nem sequer lhe pertencia, sofria pela perícia das suas qualificações e teve de aceitar ser inserido em mais uma guerra contra sua vontade.

Do seu bairro de infância já nada restava, os amigos, os vizinhos todos tinham debandado e em seu lugar chegou a ocupação das casas vazias, sem a alma dos que lá viveram. Assistiram à debandada, muitas vezes debaixo de tiros, agora assistiam à ocupação e mesmo as suas casas, onde nasceram e se fizeram homens, foram arrombadas, ocupadas e sem possibilidade de as reaverem. Viram os muros que até aí eram baixos, tinham a altura suficiente para quem circulava na rua falar livremente com quem estava nos quintais, subirem a alturas inauditas, foram entristecendo, a sua Vila Alice.

Nas suas funções as coisas corriam, ainda respeitavam Branquelas pelos seus feitos e pela opção que tinha feito, a Noite Escura também respeitavam, mas pela perícia e empenho nas acções militares em que se engajava ou que delineava com êxito garantido, esquecendo, pelo menos por enquanto, que tinha sido oficial das temidas forças de ataque do governo de ocupação anterior, agora era imprescindível. Uma sombra pairava, difusa, sob o céu azul daqueles dias quentes, algo os incomodava. As promessas de um mundo melhor tardavam em aparecer e o que viam não era mais que uma luta intestina pelo poder, pelo poder absoluto que garantiria o acesso a todas as riquezas do país e nessa luta, sem tréguas, esmagavam-se uns aos outros, irmãos contra irmãos, aniquilavam-se populações indefesas. Mas eles não podiam sair dali, estavam amarrados pelas obrigações que criaram.

Foram ascendendo na hierarquia das forças que, lentamente, se foram assenhoreando do terreno e se impunham como força dominante, nada lhes faltava já que o que de bom entrava no país era para as forças armadas e para os dirigentes. Noite Escura, general, estratega, ajudava imprescindivelmente à vitória que se desenhava. Branquelas operacional perito na execução das estratégias delineadas nunca chegaria a general. O país era para todos, mas mais para uns que para outros e Branquelas era isso mesmo, branco. Nunca lá chegaria, começou a ver ao longe e não lhe agradou a ideia de, depois de tudo o que tinha dado de si, vir a ser tratado desta forma. Foi-se avolumando a ideia de que não tinha sido por aquilo que lutara, que dedicara a sua vida a um ideal que agora parecia não o querer por perto, pelo menos depois de não precisar dele.

Noite Escura, apesar das mordomias de que era cercado, do poder quase absoluto sobre a vida e a morte nesta guerra, foi-se apercebendo de ouvido, umas frases aqui outras ali, uma conversa interrompida à sua chegada e outras pequenas atitudes, que também os seus dias não iriam ser muito risonhos. Uma revolta interna, uma facção que não gostava da forma como as coisas estavam a ser geridas, que queria outro rumo para o país, que não se revia no que estava a acontecer subleva-se. Tinha muitos seguidores, muitos apoiantes, muitos militantes de longa data; tinha de ser detida e mais uma vez os dois amigos foram chamados a por cobro a este atrevimento.

Não gostaram nada, obedeciam às ordens, obedeciam em nome de um interesse superior que era a nação unida, o país em formação, a sua terra. Foi sangrenta a resolução da crise, milhares de mortos espalhados por todos os cantos do país, questão resolvida e consciência pesada para ambos. Nunca mais foram o que eram a partir desse dia. Começaram a fechar-se em si, as conversas deixaram de ser descontraídas para passarem a ser feitas em surdina, amiúde, quando se juntavam para jantar os dois descambavam sempre na mesma opinião, temos de sair daqui isto está a dar cabo de nós, não fomos feitos para esta matança desenfreada, fomos educados como gente de bem e as armas seriam sempre a última das razões a utilizar. O que vemos agora é que estas mesmas armas que nos serviram para lutar por um país estão a reduzir esse país à miséria da sua população para bem de meia dúzia que tomaram as rédeas do poder e, na sua grande maioria, nem sequer estiveram na luta de libertação, apareceram agora cheios de esperteza saloia e fazendo-se passar por grandes patriotas.

Estou a atingir o limite. Não estás só, eu também para lá caminho e olha que até me tratam bem, mas há qualquer coisa que não me cheira, não consigo confiar. Estamos cansados de guerra e destruição é o que é e ainda por cima cheios de saudades dos nossos que felizmente pusemos a salvo a tempo e horas. Temos de pensar bem o que queremos fazer, e fazê-lo com toda a calma para não despertar atenções ou ficaremos aqui para sempre e não da maneira como o desejamos. Temos de nos ir embora, rematou. Aquilo suou-lhes aos ouvidos como o ribombar dos travões nas grandes chuvadas das terras de África. Ficaram a matraquear a ideia. Ir embora, conseguir sair sem despertar atenções, voltar para os seus, ter descanso e segurança, sabia bem sentir aquilo.

As coisas precipitaram-se no rescaldo do banho de sangue que terminou com a sublevação. Agora procuravam-se os que poderiam ter estado ligados a eles, amigos, ou simplesmente conhecidos serviam na perfeição como bodes expiatórios. Neste frenesim, alguns que nada tinham a ver com o assunto eram também arrebanhados e sumariamente punidos, para tal bastava uma simples denúncia que até podia vir de alguém que deles não gostasse ou, o mais comum, que quisesse ajustar contas malfeitas, tudo servia para arranjar culpados e porque não, fazer também uma limpeza aos que não interessava manter.

Foi a gota de água. Ver pessoas mais chegadas serem devoradas por este desvario, foi demais. Decidiram-se no jantar seguinte. Mas como haveriam de fazer? Era muito difícil conseguir autorização para sair e pessoas nas condições deles, com as responsabilidades que detinham, ainda pior. Para o fazer tinham de consegui-lo em separado, todos sabiam da sua amizade e um pedido conjunto estava fora de questão por ser liminarmente recusado e ainda os pôr de sobreaviso para com eles. Não, tinham de traçar uma estratégia que permitisse a saída de cada um, em separado, para não despertar atenções e Branquelas tinha de ser o primeiro a sair, Noite Escura fazia questão nisso, até porque tinha mais possibilidades por ser uma pessoa importante do regime, um general, as portas abriam-se com mais facilidade.

Resolvido, alegar doença de um familiar próximo, o pai que estava na Europa. Ninguém desconfiaria, pois, a grande maioria dos delfins do regime tinha as famílias fora por questões de segurança, até que as coisas estivessem suficientemente seguras para os fazer regressar de novo. Desta forma não haveria grandes comentários e desconfianças. Assim fizeram, um telegrama de casa dos pais foi a prova suficiente para lhe garantir uma autorização de saída por um tempo limitado. Noite Escura ficaria como se de nada se tratasse e, antes mesmo de acabar o prazo da autorização que dessem ao amigo, também se poria ao fresco. Aguardaram por uma boa oportunidade e ela surgiu por desígnios do destino, uma visita a um país que vendia armamento para o seu, foi o melhor que lhes podia acontecer. Noite Escura, como estratega e responsável do material de guerra, teria de ir ver o armamento, verificar a sua eficácia e efectuar a encomenda do que queriam para as forças armadas.

Melhor oportunidade que estas não teriam por certo. Prepararam-se para que, antes da saída de Noite Escura já Branquelas estivesse fora, conseguiram. Tudo correu como planeado, haviam de se encontrar os dois, mais tarde, na metrópole e depois disso rumar a sul, ao sol e à serra onde viviam agora os seus entes queridos. Ainda o avião não tinha descolado já Branquelas olhava pela janela e deixava cair uma lágrima de saudade, estava a despedir-se, a dizer adeus à terra em que nascera, a terra que o levara a tomar uma atitude drástica, magoando, inclusive, os seus pais, abandonando os seus amigos. Olhava por aquela janela e nada via, os olhos embaciados pelo desânimo que se apossara dele depois de tanto ter dado por ela, dizia-lhe adeus, silenciosamente, deixando ali parte da sua vida e dos seus sonhos de um país verdadeiramente novo. Tudo fora em vão, assim pensou.

Manteve-se em silêncio durante todo o vôo, às perguntas que lhe dirigiam respondia com um sim ou não consoante o que perguntavam e o seu espírito estava disposto a responder. Estava triste. A chegada à metrópole não lhe trouxe nenhuma felicidade ou alegria especial, não sentiu nada a não ser um vazio no estômago, sentiu-se vazio de alma. Esta terra nada lhe dizia, não a conhecia e lamentava que tivesse de ser desta forma que a viria a conhecer, não era a sua terra. Procurou alojamento para esperar mais uns dias até chegar o seu amigo, o general Noite Escura. Aproveitou os dias para percorrer a cidade, conhecer as pessoas, o bulício que se vivia nas ruas, os bairros tradicionais e concluiu, era impossível que conseguissem aguentar aquilo, de uma ou de outra forma acabaria livre, agora já defendia que devia ser de outra forma que esta não funcionou e estava viciada à partida.

E este vazio que não o largava, que sensação esquisita, nunca lhe tinha acontecido.


28.03.18

 

Logo à chegada, no meio daquela imensa confusão em que se encontravam os que vinham de todas as partes do império moribundo, recusaram-se firmemente a ser separados.

Atravessaram um mar de gente deitada pelos cantos do aeroporto, embrulhadas em cobertores, em casacões que nunca usaram na vida, fruto de ofertas de quem os recebia. Crianças, espalhadas por entre os adultos caras espantadas, ainda sem reconhecerem a tragédia, na sua inocência, ainda brincavam umas com as outras. Os adultos, em cujas faces se marcaram as angústias e o terror do que lhes estava a acontecer, não exprimiam qualquer clamor, um rancor, nada que lhes aliviasse a dor de tal tragédia, estavam para ali amontoados, à espera. À espera de que alguma coisa acontecesse, à espera que isto não fosse mais que um pesadelo que, ao acordarem, logo desapareceria. Mas não era, nem os mais optimistas, que os havia, pensando sempre no retorno ao país de onde os trouxeram, já acreditavam nessa possibilidade. Estavam para ali à espera que algo acontecesse.

Filas enormes de gente que, parecia irreal, ordeiramente aguardavam que lhes dessem um destino, um porto de abrigo, um local para viverem e um molhinho de notas para sobreviverem ao primeiro impacto, dez mil escudos, este era o preço de uma vida, era o que custava uma vida destruída, um sonho desfeito. Também eles, três famílias amigas, desde sempre, ali se postaram. Lentamente a fila foi andando até chegar a eles. Depositaram-lhes o molhinho de notas nas mãos, destinaram-lhes um hotel para cada uma delas, a expensas do Estado que muito dinheiro recebeu de países amigos para os ajudar, até que organizassem a sua vida, mas recusaram. Recusaram-se a ser separados, recusaram que uma vida quase comum, fosse desta forma, abrupta e brutalmente separada pela burocracia que lhes estava à frente, impedindo-os de continuar unidos. Reclamaram, regatearam e finalmente conseguiram o seu objectivo, ficaram todos no mesmo hotel.

Lá se instalaram num pequeno hotel da cidade, bem no centro, que isto andava tão às moscas que até vinha por bem esta enchente dos hotéis pagas pela instituição criada para gerir todo este imbróglio. Não se quedaram por muito tempo, gente houve que ali viveu por muito tempo, até conseguir arranjar meios de subsistência que lhes permitisse largá-los, mas eles dispuseram-se a organizar a sua vida rapidamente, não queriam ficar a dever favores, muito menos a quem os colocara naquela situação. Como servidores do Estado foi-lhes, talvez, mais fácil, nem esperaram e assim que viram a abertura para tal logo se candidataram a ser reformados e conseguiram. Com esse estatuto e mais algumas poupanças que traziam, trocadas nas ruas da cidade de onde provinham, logo magicaram a melhor forma de, ajudando-se uns aos outros, conseguirem fugir desta ameaça à sua integridade psicológica.

Estudaram o país, estava um caos, quem podia, também daqui queria sair vendendo ao desbarato os seus bens e nesta situação, procurando bem, até podiam encontrar uma pechincha para adquirirem e largarem de vez este hotel que se ia tornando uma ruína com o excesso de gente e a falta de manutenção. Começaram por escolher o local mais adequado, e olharam para sul, mesmo no fim do país, juntinho ou o mais perto possível da sua terra, perto de África. Optaram por procurar aí alguma coisa que os satisfizesse, encontraram várias, escolheram a melhor, não junto às praias onde todos procuravam lugar, mas mais para o interior numa serra ainda pouco povoada onde as quintas, quase ao abandono se ofereciam a preços relativamente baixos. Aí fixaram a atenção, aí procuraram, e finalmente encontraram o ideal para eles, que não nadavam em dinheiro, mas que conseguiriam superar essa aflitiva situação em conjunto, sabiam que se não se unissem nunca o conseguiriam, a união faz a força, diziam e assim a praticaram.

Estabeleceram-se numa zona de montanha, sossegada e longe das multidões, sempre gostaram da calma e do sossego dos seus quintais, agora não tinham quintal mas tinham uma boa porção de terreno à volta das casas para utilizarem como lhes aprouvesse. Daí a porem a cabeça a funcionar no sentido de tirarem da terra o melhor que esta lhes pudesse dar foi um saltinho e era vê-los a fazer planos, plantar umas árvores de fruto tradicionais da região e também, porque não, já que o clima era ameno, tentar umas das que tinham deixado na terra que amavam. Foram surgindo, os abacateiros, as mangueiras, as bananeiras, uns pés de abacaxi e muitos outros, misturados com as frutas da região que já ali existiam ou que foram renovando, iam-se aprumando embora com o tempo mais frio se aquietassem no seu crescimento mas, assim que caíam os primeiros raios de sol de verão, cresciam a olhos vistos. Asseguravam assim, pela fruta e pela horta que os ocupava, algum do sustento alimentar de que careciam e os almoços de sábado, se sofreram alguma interrupção, logo se renovaram, com a facilidade de estarem muito próximos uns dos outros, afinal nem tudo fora tão mau, o pior eram as saudades da terra e dos filhos que por lá ficaram.

Este paraíso foi conseguido com a aquisição de uma quinta, suficientemente grande para ser dividida entre as três famílias. Juntaram todo o dinheiro que tinham e, ao comprá-la, já tinham destinado o que lhe fariam, a divisão pelos três e cada um com o seu pedaço de terra e uma casinha do campo, que iam melhorando na medida das suas possibilidades, lá se iam aguentando e tentando agarrar de novo a felicidade perdida. O primeiro Natal, dia do ano em que sempre se reuniram em casa de um ou de outro, que a coisa ia rodando para não ser sempre na mesma, retomou-se aqui, sem os filhos que não podiam estar presentes, o país estava em guerra acelerada, muito maior que a que tinham conhecido, nesta nada se poupava, nem havia misericórdia para os vencidos, trucidavam-se uns aos outros sem dó nem piedade, uma miséria. Só restava Meia de Leite que, estando na Europa, podia mais facilmente ir até eles, afinal era o seu primeiro Natal nesta parte do mundo e era altura também de conhecerem o neto que já espigava, mais a barriga de onde despontava, já sabiam, uma futura neta.

Dos seus quintais, na serra, perto do mar, pequenas quintinhas de onde agora extraíam enorme quantidade de alimentos frescos e saudáveis, que estavam habituados a obter da terra o que esta lhes dava sem necessidade de a forçar a produzir mais que o necessário. Chegava para eles e até distribuíam pela vizinhança, estavam finalmente a encarreirar as suas vidas depois da hecatombe, reformados, sem grandes necessidades que o carinho dos seus e dos amigos iam moldando a nova realidade à que traziam no peito. Pitangas, tinham de arranjar umas sementes para ver se conseguiam fazê-las crescer, adoravam aqueles pequeninos frutos amarelo-avermelhados, com um sabor entre o amargo, da sua acidez e o doce se estivessem madurinhas. Quando Branquelas e Noite Escura pudessem vir ter com eles trariam uns frutos de que retirariam as sementes para tentar a sua produção. De resto, quase todos os que conseguiram semear se reproduziram e melhor ou pior iam dando alguma coisa.

Foi uma festa, quinze dias de festa naqueles cercados do meio da serra. Meia de Leite chegou com Jeanne e José, Marie, nome da mãe de Jeanne, vinha aconchegada na barriga de sua mãe, já suficientemente crescida para se notar a proeminência. Todos festejaram a chegada, sem excepção, todos se congratularam pelo seu ar, pela sua família e pela sua presença no primeiro Natal que passavam nestas terras. D. Francisca e o sr. José, choravam a chegada do filho que não viam desde o funesto dia do seu desaparecimento, ou antes, o dia da sua fuga. Abraços, beijos, apertos, tudo servia para expressar a sua satisfação e a lagrimazinha sempre presente. Os amigos, pais de Noite Escura e de Branquelas, associaram-se mais comedidos, olhando para Meia de Leite não deixavam de se lembrar dos filhos, lá longe, em guerra por uma terra que nem sabiam como ia ficar ou quando iria acabar aquela maldita guerra.

José, pequenino ainda, corria pelo campo, perseguia as galinhas, fugia dos patos e corria, solto pela natureza sob os olhares atentos dos avós agora entusiasmados com o neto presente e a futura neta já a caminho. Agradeciam a Deus que no meio de tanta desgraça se tivessem salvo incólumes embora ainda preocupados com os outros dois que lá ficaram, um por opção, Branquelas, e o outro forçado, Noite Escura. Ainda haviam de se voltar a juntar todos de novo, mas todos mesmo, assim pensavam e rezavam para que acontecesse, custava-lhes ver os amigos naquela eterna preocupação por não terem os filhos por perto, mas Deus é grande, há-de trazê-los para junto de nós sãos e salvos, que é como os queremos. A festa foi preparada, a noite santa seria vivida por todos e com todos juntos, como sempre.

À mesa a conversa foi alegre, o jantar tradicional e, quando chegaram à fruta, aí é que todos se orgulharam de apresentar na fruteira a melhor de todas, aquela que eles próprios produziram, frutos da época, frutos do país e também outras iguarias, directamente das estufas que mantinham, bananas, abacaxi e mangas. Uma verdadeira mistura de Europa e África numa só mesa. Mas isto dá-se por aqui? Claro que sim, no inverno é mais difícil, mas como temos umas plantas nas estufas, tudo se dá, só nos faltam as pitangas, esperamos que quando os teus amigos cá vierem, tragam algumas, para aproveitarmos as sementes e ver se conseguimos fazê-las crescer aqui também. Que maravilha, não imaginava, e as bananas são saborosas, pois são, mais pequenas, mas muito boas. Tens de levar alguma coisa lá para a Bélgica, para matar saudades. Não é preciso, há lá de tudo isto, bem quase tudo, porque as mangas são maiores e não são destas pequeninas e pintalgadas as melhores e as que comíamos lá pela terra.

Notícias de Frederico e Ambrósio, sabem como estão? Aquilo nunca mais acaba, pensávamos nós que tínhamos uma guerra e esta, o que é? Uma carnificina é o que é. Nunca pensei e a verdade é que não me arrependo nada de ter vindo embora, só lamento a preocupação que vos dei. Tanto quanto sabemos estão bem só não gostei muito da voz do Frederico, pareceu-me triste, mas garantiu-me que estava tudo bem. O Ambrósio lá vai e é quase general, quem diria? A minha opinião é que deviam largar aquilo tudo, logo que o conseguissem e que viessem embora que aqui sempre têm quem lhes queira bem. O problema é que agora não os deixam vir de qualquer maneira, mas já nos garantiram que assim que pudessem viriam, estavam mesmo a pensar organizar as coisas de maneira a poderem vir os dois juntos. Isso é que era uma alegria e se pudesses cá estar também era uma festa, todos juntos de novo, vamos ter esperança que isso acontecerá.

Os quinze dias de férias de Natal passaram quase sem se dar por eles e agora, reunidos à volta do portão de casa dos pais, todos os amigos se despediam, abraços beijos, votos de boa viagem, não se esqueçam de ligar quando chegarem, para ficarmos descansados. Mãos no ar, o adeus até à próxima, venham depressa e naqueles olhos cansados e gastos pelo tempo e pela carga de desgraça que lhes caiu em cima, umas lágrimas, pequeninas, sentidas, foram rolando cara abaixo.


27.03.18

 

Desde que tinha começado a trabalhar naquela empresa que a sua vida tinha mudado substancialmente. Jeanne, depois de várias peripécias, idênticas à que o tinha surpreendido, não mais o largou, na verdade não sabia muito bem qual dos dois não largou o outro.

Sentiam-se bem juntos, o casamento nem sequer tinha sido equacionado, mas a vida em comum, trapinhos juntos, começou logo que ela lhe descobriu uma colocação, um emprego que lhe pareceu o melhor para ele. Já pensava certamente no que se seguiria, não discutiram condições, não quiseram saber de mais nada para além daquilo que era o amor entre eles. Sentiam-se atraídos, cúmplices da vida em comum. Só um assunto lhes chamou a atenção para uma discussão que se antevia resolvida sem delongas. O nascimento do primeiro filho. Vinha a caminho e estava prestes a ver a luz do dia, José assim se chamaria.

José já nasceria com uma estrelinha, o pai fugira da guerra, do país onde nasceu para lhe permitir uma vida futura em segurança. Desde o início que o nome foi consensual, Meia de Leite explicou a Jeanne porque gostaria que o filho se chamasse José, ela compreendeu sem nenhuma argumentação em contrário. José ficou, José seria. O porquê era tão simples como dois e dois serem quatro, o pai. O pai de Meia de Leite chama-se José e como era um rapaz seria José, caso contrário optaria pelo nome da mãe. A escolha não se pôs em termos de ser bonito, da moda, ou o que quer que fosse, não, era só e unicamente uma homenagem que fazia aos pais pelo que sempre foram para ele e sobretudo pelo que os fez sofrer com a sua fuga e ausência por todos estes anos.

José nasceu, Meia de Leite chorou e a mãe, orgulhosa do seu rebento, sofreu as dores do parto sem um queixume. Em poucos minutos tinha nos seus braços um rapagão que embora os amigos dissessem que tinha parecenças aos dois, na verdade ela nada encontrava. Não sabia como conseguiam logo encontrar parecenças quando, o que tinha nas mãos, era uma criança recém-nascida e engelhada como um velhinho, dentro de dias, talvez uma semana, então talvez já notasse qualquer coisa de um ou de outro dos progenitores, mas agora? Não, não via nada.

Uma semana depois, efectivamente, começou a descobrir o seu filho. Uma mistura interessante, pensou, dois continentes que se encontravam para gerar uma nova espécie de vida. Uma pele morena, não demasiado escura, cabelos negros e longos, como o pai, mas os olhos, aqueles olhos que abarcariam o mundo, esses, ninguém lhos tirava. Olhos azuis-claros, como os da mãe. Que não, ainda era cedo, ia mudar, a cor dos olhos só mais tarde se afirmariam. Qual quê? Como era possível que aqueles olhos de cor clara, azuis, quase transparentes, da cor de um céu luminoso e límpido, como podiam mudar? Não, não iam mudar nada, eram os seus olhos e José ia ficar com eles. José uma mistura de dois continentes, da Europa e de África, pele morena e olhos tremendamente azuis. Que coisa mais bonita.

Sem o saber, José, simbolizou para o pai, a liberdade por ele atingida anos antes, nasceu no dia 25 de Abril de 1974, passava pouco mais da meia-noite e quinze. Parecia que tinha trazido a liberdade não só ao pai, mas ao mundo a que ele agora pertencia. Uma estrela, por certo, lhe tinha iluminado o caminho que o destino tinha composto para esta felicidade. Antes dessa hora, já Meia de Leite gastava solas de sapatos nos corredores da maternidade, estava quase, dizia o médico, estava quase, sem dúvida que hoje era o dia, dentro de alguns minutos, talvez meia hora estaria cá fora, forte e barulhento, repetia para um pai aturdido pela expectativa de o vir a ser. Uma experiência inolvidável. Não tinha as dores, até ali só o prazer, mas prometia compensar Jeanne do sofrimento do parto, nunca ela teria uma queixa a seu respeito, foi assim com os pais, de que se recordava sempre, a harmonia caseira, seria assim com ele também.

Foi no corredor do hospital que Meia de Leite teve conhecimento das últimas notícias de Portugal. Que tinha havido uma revolução, que os militares se sublevaram e tinham conseguido depor o governo. Ainda era confusa a situação, estava tudo muito em cima do acontecimento e aguardavam-se notícias mais concretas para o noticiário da noite. Uma coisa se sabia, a população tinha aderido em força a este movimento já denominado MFA e seguia-os para todo o lado apoiando a sua acção. Especula-se que a origem desta acção tenha a ver com as guerras de África onde o país se via envolvido e que não tinham fim à vista, há também opiniões, que se dividem, afirmando que o despoletar da situação se deveu a promessas financeiras não cumpridas pelo governo ora deposto. Vamos acompanhar a evolução da situação e daremos a conhecer tudo o que se vier a passar neste país que também é Europeu.

Agora sim, estava preocupado com os pais e com os amigos. Que iria acontecer a seguir? Que iria o governo, agora nascido desta revolução, fazer? Que linhas seguiria? Qual a sua posição face aos territórios de África? Como ficaria a guerra que se arrastava? Tudo questões a que não sabia responder nem encontrara respostas neste breve noticiário da televisão. Ia estar atento às notícias da noite, ligar para os pais e saber o que se passava por lá, ao mesmo tempo, dava-lhes a notícia de que a partir de hoje eram oficialmente promovidos a avós. Ficariam radiantes com certeza, afinal é o sonho de qualquer pai vir um dia a ser avô de um rebento dos seus filhos, ter um acrescento do seu sangue a germinar no mundo, eles não eram excepção por certo.

Por agora, até ao noticiário da noite, mais não faria que admirar a sua obra, a obra dele e de Jeanne, que não podia esquecer-se que ela tinha tido uma parte importante na produção deste ser maravilhoso que embalava nos braços. Teve por certo a parte mais pesada deste feito, suportou o seu peso, ainda que minúsculo, durante nove meses, os incómodos de ver a barriga crescer até ter formado, dentro dela, um ser que iriam amar para o resto da vida, suportou as dores do nascimento de José e agora suportaria os afazeres do seu crescimento, não era fácil, tinha de reconhecer, o seu papel tinha sido muito menor, mas era o que lhe cabia. Agora faria parte do acompanhamento que ele necessitava para se tornar um homem, um ser humano que ambos queriam que fosse educado, bem formado e saudável.

Entre o braço, que o apoiava, e o peito que o aconchegava, aquele feijãozinho, como lhe chamava, parecia um bonequinho de brincadeira. Tão pequenino que só uma das suas mãos seria suficiente para o segurar, mas tinha de o fazer com as duas, por segurança, e se mais tivesse mais usaria para o amparar. Olhava para ele e sentia arrepios na pele, como a natureza é generosa, deu-lhes o melhor do mundo, um filho, deu-lhes uma nova vida que teriam agora de cuidar e fazer florescer. Não lhe encontrava parecenças com ninguém, tão pequenino era e tão engelhado ainda estava, mas havia de as encontrar mais tarde. Sentiu o seu pequeno coração bater bem juntinho ao seu, apoiado no seu peito, aqueceu-o, os olhinhos ainda fechados, um ou outro som que nada poderia significar senão as dores da entrada num novo mundo que teria de percorrer. O seu filho.

As notícias da noite foram vistas no quarto do hospital onde acompanhava Jeanne. Lá estavam, logo à abertura, revolução dos cravos, assim lhe chamavam agora devido à ostentação dos ditos nos canos das espingardas que afinal e segundo se apurou depois, para mais não serviam. Foi uma revolução morna, sem sangue, tudo feito à boa maneira do povo sereno que era e, até se admirava de não ter sido logo comemorada com uma valente patuscada, mas viria a ser depois, durante muitos anos assim comemorada. O que se sabia era que tinham deposto o governo, que seriam enviados para fora do país e que se criava desde logo um governo provisório, uma junta de salvação Nacional, qualquer coisa entre o que se poderia supor ser um timoneiro para o país. Nada de eleições para já, que o momento era revolucionário e os artífices desta coisa ainda tinham de se organizar suficientemente para depois permitir esse regabofe de eleições populares num caminho que levaria à democracia parlamentar.

Quanto às colónias, as coisas não estavam muito certas, sendo que cada um proferia as declarações mais diversas, desmentindo o que anteriormente tinha sido dito e as afirmações proferidas. Estava tudo ainda muito verde e a bem da verdade, o que transparecia, era que não sabiam muito bem o que queriam, mas lá chegariam. O problema que se punha era a rua, a rua onde agora o povo impunha as suas vontades e influenciava decisivamente, desafiando até, os nóbeis conselheiros desta revolução. Queriam acabar com a guerra já, nem mais um soldado para as colónias, gritavam, independência imediata das colónias e outras pérolas como estas. Já não se cuidava em pensar um rumo, um futuro, uma política, nada, era o tudo ou nada de que se viriam a arrepender muitos anos depois, mas isso agora não contava, eram os grilhões quebrados que interessava mostrar ao mundo, da pior maneira, diga-se em abono da verdade, no futuro logo se pensaria.

Para Meia de Leite, isto era importante, saber o que queriam fazer da terra dele, da terra onde nascera e crescera e onde, ainda, residiam os amigos e os pais. Já tinha passado por turbulências inimagináveis nos países vizinhos daquele onde vivera, tinha sido testemunha, ainda bem pequeno, das atrocidades cometidas ao ascenderem a uma liberdade não programada e repentina, tinha receio do que viesse a acontecer por ali também. Logo que terminou o noticiário ligou para os pais, não conseguiu falar com eles, com a preocupação por um lado e a alegria do nascimento do filho por outro, esqueceu-se de que tinha, primeiro, de falar para o sr. Baptista, para este informar a mãe de que iria telefonar a determinada hora. Só assim ela poderia estar à espera da chamada, uma vez que não tinham telefona em casa. Teria de deixar para o dia seguinte, logo de manhã avisava o sr. Baptista e à tarde ligaria para falar com ela, para lhe dar a novidade do nascimento de José e para a questionar sobre a situação ao mesmo tempo que lhes daria uns conselhos pois sabiam que não ficariam sozinhos, ainda tinham um filho e este não os deixaria na rua se algo acontecesse de anormal.

Já tinha abordado o assunto com Jeanne, ao de leve, mas teria de o discutir com mais profundidade, agora mais que nunca dados os acontecimentos recentes. Em caso de necessidade os pais teriam de viver com eles, ela não se importava, para solidão já bastara a vida dela antes de o conhecer, dizia, agora ter uma família alargada até tinha a sua graça e era sempre bom o neto crescer com os avós ao pé, dava-lhe outra estabilidade psicológica. Aquietou-se com esta posição de Jeanne, agradeceu-lhe dizendo que era um filho à moda antiga e não poderia deixar os seus ao Deus dará, tendo condições para os receber. Ela olhou para ele e sorriu, tinha o que sempre quisera, uma família de verdade, estava feliz, embora o momento da vinda dos pais de Meia de Leite pudesse até ser traumático. Garantia para si própria que se isso acontecesse, ali, ao pé deles, recuperariam a vontade de viver, alegre e em família como sempre viveram.

 

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